Neuroplasticidade na construção terapêutica de pessoas autistas: impressões da Psicologia Histórico-Cultural na clínica
Neuroplasticidade na construção terapêutica de pessoas autistas: impressões da Psicologia Histórico-Cultural na clínica
O autismo, para mim como psicólogo clínico, é um tema que permeia tanto meu trabalho quanto minha formação. A comunidade científica reconhece o autismo como um transtorno do neurodesenvolvimento, mas historicamente ele já foi interpretado de outras formas. Durante muito tempo, especialmente sob a influência da psicanálise, ele era considerado uma psicose infantil. No Brasil, até meados da década de 1980, quando ainda não tínhamos uma reforma psiquiátrica consolidada, pesquisas sobre o autismo buscavam “curas” ou soluções para crianças autistas. Atualmente, com base no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-V), o autismo é entendido de maneira mais ampla, e as pesquisas se dividem entre abordagens organicistas, que destacam fatores genéticos, e interacionistas, que analisam as relações entre estímulos, respostas e afetos no desenvolvimento e no tratamento. Dentro desse cenário, a Análise Aplicada do Comportamento (ABA) tornou-se um modelo terapêutico bastante difundido (Silva, 2019).
Na minha prática clínica, procuro integrar uma perspectiva histórico-cultural, que compreende o autismo como parte de uma visão social da deficiência. Inspirado por Vigotski, adoto o entendimento de que a deficiência não está na pessoa, mas na maneira como a sociedade organiza suas relações e estruturas. Isso me faz resgatar as reflexões de Karl Marx, que, em O Capital, apontou como a lógica capitalista de superprodução transforma o olhar sobre a deficiência. Saímos de uma visão mística — que via a deficiência como bênção ou maldição — para uma percepção biológica ou química, muitas vezes reduzida a diagnósticos médicos. Para superar essa visão, trabalho com o conceito de neurodiversidade, que reconhece o autismo e outras condições como variações legítimas do desenvolvimento humano, em vez de problemas a serem corrigidos (Silva, 2019; Paoli; Machado, 2022).
Integrando teoria e prática clínica
Em minha prática, percebo como essas compreensões teóricas se refletem nas narrativas de autistas e suas famílias. Frequentemente, há uma disputa por definir de forma exata o que significa viver como autista. Essa disputa influencia diretamente o trabalho clínico, pois é essencial criar um espaço em que a pessoa autista possa construir seus próprios sentidos e significados. Ao contrário de abordagens behavioristas, que centralizam o poder no terapeuta e focam no problema, meu trabalho é pautado pela produção de sentidos. Procuro ajudar o paciente a desenvolver suas próprias ferramentas de emancipação, autonomia e autoafirmação, respeitando suas especificidades e personalidade (Stepanha, 2017).
Um aspecto que considero fundamental no meu trabalho é entender que o psiquismo humano se constrói a partir das relações sociais. Isso inclui reconhecer que a comunicação de pessoas autistas não é inexistente, mas diferente. Há uma ideia de que “autistas não se comunicam”, mas meu papel como terapeuta é identificar as formas de comunicação que já estão presentes e utilizá-las para estabelecer vínculos e promover o desenvolvimento. Por meio da linguagem, mediam-se processos de pensamento e a construção do psiquismo, e isso exige sensibilidade para compreender como cada paciente internaliza e sintetiza suas relações sociais (Stepanha, 2017).
Outro conceito essencial que aplico é o de neuroplasticidade, como descrito por Luria. Ele sustenta que, embora o cérebro tenha uma base genética, as funções psíquicas superiores — como linguagem, aprendizagem e socialização — estão intrinsecamente ligadas ao contexto cultural e às interações sociais. Na prática, isso significa que meu trabalho não é apenas ajudar o paciente a adquirir habilidades específicas, mas promover um desenvolvimento amplo, alinhado aos seus desejos e ao seu contexto de vida. A neuroplasticidade me permite abordar a terapia como um processo dinâmico e contínuo, ajudando o paciente a desenvolver estratégias que o capacitem para uma vida plena. Nesse sentido, conceitos como neurônios-espelho e teoria da mente também entram no trabalho clínico, sempre adaptados às necessidades e ao ritmo de cada pessoa (Schon; Silva, 2021).
Demandas da vida adulta: foco no desenvolvimento
Uma parte significativa dos pacientes que atendo são adultos autistas. Eles frequentemente chegam à clínica com demandas relacionadas ao trabalho, afetos e gerenciamento de crises emocionais, sensoriais ou cognitivas. Essas questões muitas vezes dificultam o convívio social e a organização de uma rotina funcional. Meu trabalho aqui é facilitar um processo terapêutico que auxilie na construção de sentidos e na formação de conceitos, capacitando o paciente a criar suas próprias ferramentas para lidar com os desafios do dia a dia.
Também noto que a busca por independência é um tema central para muitos desses pacientes, especialmente no que diz respeito às relações com os pais. A independência não se limita à questão financeira, mas também abrange a capacidade de estabelecer relações saudáveis, seja no trabalho, nas amizades ou em relacionamentos afetivos. Na clínica, isso significa trabalhar mecanismos de mudanças relativos às habilidades de comunicação, gestão de frustrações e entendimento das dinâmicas interpessoais. Ajudo os pacientes a interpretarem as intenções que estão implícitas na linguagem e a desenvolver maior regulação emocional para lidar com situações desafiadoras.
Conclusão
Com base na minha experiência e na integração teórica que realizo, acredito que o trabalho clínico com pessoas autistas deve ir além de abordagens terapêuticas convencionais. A partir da perspectiva histórico-cultural, valorizo a produção de sentidos e a autonomia do paciente, em vez de focar apenas em intervenções comportamentais ou em objetivos predefinidos. Essa abordagem permite respeitar a singularidade de cada pessoa autista, reconhecendo que a comunicação, o desenvolvimento e a socialização se dão de maneiras únicas e legítimas.
Minha prática é guiada pelo compromisso de promover o desenvolvimento integral dos pacientes, ajudando-os a construir vidas mais independentes e satisfatórias. Ao integrar conceitos como neurodiversidade e neuroplasticidade, busco criar um espaço terapêutico acolhedor, que respeite os desejos e as capacidades de cada paciente em seu contexto social e cultural. Dessa forma, acredito que a clínica pode ser uma ferramenta poderosa não apenas para o desenvolvimento individual, mas também para a construção de uma sociedade mais inclusiva e justa.
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Jonas Marssaro
Psicólogo Clínico
Jonas Marssaro, psicólogo clínico (CRP 12/26563), atuando na perspectiva Histórico-Cultural com população LGBTI+ e pessoas neurodiversas; Jonas é um homem gay e autista e produz conteúdo nas redes sociais sobre diversidade sexual, gênero, deficiência e neurodiversidade.
Contato: jonas@meupsiautista.com; (47) 98914-1846; @meupsiautista
PAOLI, J.; MACHADO, P. F. L. Autismos em uma perspectiva histórico-cultural. Gesto em Debate: Revista Científica Eletrônica de Educação. Universidade Federal do Mato Grosso do Sul: Campo Grande-MS, v. 22, n. 32, p. 534-565, 2022. Disponível em: <https://periodicos.ufms.br/index.php/gestodebate/article/view/17534>. Acesso em 27.nov.2024.
SCHON, V. J.; SILVA, W. K. Neuroplasticidade numa perspectiva Histórico-Cultural. Revista Voos: Revista Polidisciplinar Eletrônica. Centro Universitário Guaraicá: Guarapuava-PR, v. 17, n. 2, p. 115-132, 2021. Disponível em: <https://revistavoos.com.br/index.php/sistema/article/view/48>. Acesso em 27.nov.2024.
SILVA, H. M. M. Autismo, formação de conceitos e constituição da personalidade: uma perspectiva histórico-cultural. 2019. 118f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo-SP, 2019. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48138/tde-23052019-170744/en.php>. Acesso em 27.nov.2024.
STEPANHA, K. A. O. A apropriação docente no conceito de autismo e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores: uma análise na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural. 2017. 167f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel-PR, 2017. Disponível em: <https://tede.unioeste.br/handle/tede/3363>. Acesso em 27.nov.2024.