Sexualidade infantil: Freud ou Ferenczi?
Sexualidade infantil: Freud ou Ferenczi?
Sandor Ferenczi morreu relativamente jovem, com 59 anos de idade, de anemia perniciosa. Adepto da psicossomática psicanalítica como sou, este fato despertou minha atenção. A relação com uma situação traumática na origem da somatização é imediata: Ferenczi enfrentava conflitos significativos com Freud e outros membros do círculo psicanalítico devido à sua defesa de uma abordagem terapêutica mais acolhedora e empática entre analista e paciente, mas contudo, foi a rejeição de seu artigo intitulado “Confusão de línguas entre os adultos e a criança: A linguagem da ternura e da paixão, durante o Congresso Psicanalítico de Wiesbaden, em junho de 1932, que o abalou profundamente. Ele faleceu nove meses depois.
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O artigo só foi publicado em 1949, na Revista Internacional de Psicanálise, 10 anos depois da morte de Freud. Ferenczi tinha sido paciente de Freud e este, antes desses conflitos. tinha declarado que Ferenczi era seu discípulo predileto.
O que havia de tão perturbador no artigo de Ferenczi? Jean Laplanche no item Sedução de seu Vocabulário de Psicanálise escreveu:
“Ferenczi descreveu como a sexualidade do adulto (a linguagem da paixão) operava verdadeiramente uma efração no mundo infantil (linguagem da ternura) O perigo desta renovação da teoria da sedução estaria em voltar à noção pré-analítica da inocência sexual da criança…” (Pontalis & Laplanche, p 614, sublinhado por mim)
Ferenczi, neste artigo sobre as duas linguagens, trouxe de volta não apenas a inocência infantil, como Laplanche está dizendo, mas, ao mesmo tempo, também a realidade do abuso sexual incestuoso e a noção de trauma interrelacional.
Palavras de Ferenczi:
“Ou são os pais que tentam encontrar uma gratificação substituta de forma patológica para suas frustrações, ou são pessoas consideradas confiáveis, como parentes (tios, tias, avós), governantas ou empregados, que abusam da ignorância e da inocência da criança. A explicação imediata — de que essas são apenas fantasias sexuais da criança, uma espécie de mentira histérica — infelizmente é invalidada pelo número de tais confissões, por exemplo, de ataques a crianças, cometidos por pacientes que estão realmente em análise. (…) Uma forma típica de seduções incestuosas pode ocorrer assim: um adulto e uma criança se amam, com a criança alimentando a fantasia lúdica de assumir o papel de mãe em relação ao adulto. Essa brincadeira pode assumir formas eróticas, mas permanece, no entanto, no nível da ternura. Não é assim, entretanto, com adultos patológicos, especialmente se foram perturbados em seu equilíbrio e autocontrole por algum infortúnio ou pelo uso de drogas intoxicantes. Eles confundem a brincadeira das crianças com os desejos de uma pessoa sexualmente madura ou até mesmo se permitem — independentemente de quaisquer consequências — serem levados por esses impulsos, ( Ferenczi, 1988, p . 201 )
Quem está certo, Freud ou Ferenczi? Vou procurar responder no decorrer deste artigo.
Na correspondência com o amigo Fliess, na carta de 21/09/1997, Freud comunicou palavras que ficaram para a posteridade:
“Tenho de te confiar imediatamente o grande segredo que lentamente em mim se iluminou no decorrer dos últimos meses. Já não acredito na minha neurótica”
Quer dizer, deixou ele de acreditar no que elas contavam: terem sido abusadas sexualmente pelo pai, quando crianças.
Na próxima carta da correspondência com Fliess, 24 dias depois, Freud se referiu pela primeira vez ao complexo de Édipo:
“Veio-me à mente apenas uma ideia geral que tenha valor geral. Encontrei em mim, como em toda parte, sentimentos de amor pela minha mãe e de ciúmes do meu pai, sentimentos que são penso comuns a todos jovens que se tornaram histéricos. Se é bem assim, compreendemos, a despeito de todas as objeções racionais que se opõem a hipótese de uma inexorável fatalidade, o efeito intenso do Édipo Rei”
Por estas palavras, vemos que a ideia de Freud não veio de uma hora para outra, mas foi se alicerçando, por um tempo, em observações. Por que não a comunicou antes a seu amigo e confidente Fliess, a quem confiava tudo, e somente o fez 24 dias após ter desacreditado suas pacientes? Aparentemente, Freud precisava eliminar uma para pode colocar a outra, como se fossem excludentes. Vamos ver ser isto se confirma
Apenas em 1910, Freud concebe, em Cinco Lições sobre a Psicanálise, que eram fantasias de suas pacientes:
“Quando então tive que reconhecer que estas cenas de sedução não tinham nunca acontecido e que eram somente fantasias”
Por fim, Freud reconheceu mais tarde, em 1925, que, com as fantasias de sedução, tinha :
“pela primeira vez encontrado o complexo de Édipo’”(citado por Pontalis & Laplanche, p.613)
Aqui surge um problema sério: se a fantasia de abuso sexual é fruto do complexo de Édipo da menina, o menino, que também tem complexo de Édipo, logicamente deveria então ter a fantasia que sua mãe abusou sexualmente dele. Mas este “material clínico” nunca apareceu na psicanálise de Freud até Lacan.
É notável que esta contradição tivesse passado desapercebida no meio psicanalítico, o que prova a autoridade de Freud. No entanto, Freud sabia dela e procurou eliminá-la na Introdução à Psicanalise, em 1917. Aí ele desenvolveu que temos fantasias que foram herdadas de realidades ocorridos num passado arcaico. Lá existiu uma família primitiva, onde um pai dominador fazia sexo com a filhas, mas a mãe não fazia sexo com os filhos de sexo masculino.
Freud não apresentou evidências da existência desta família primitiva e, hoje, sabemos que em mamíferos machos ,que convivem com sua cria desde cedo, não há prática de incesto. (Parker & Parker, 1986; Pusey & Wolf, 1996 ).
Simplificadamente, o leitor encontra na IA (ChatGPT) o seguinte:
“O incesto entre pai e filhas é extremamente raro entre mamíferos na natureza, mas não é impossível. A maioria das espécies de mamíferos possui mecanismos biológicos, comportamentais ou sociais que reduzem a probabilidade de cruzamentos consanguíneos, incluindo entre pais e filhas”
O alicerce que permitia sustentar que a menina tinha fantasias de incesto, mas não o menino, cai por terra, uma vez que esta família primitiva, suposta por Freud, nunca existiu. Assim, o pensamento de Freud, de que as queixas de incesto, por parte de pacientes femininas, não passavam de fantasias, fica insustentável (porque, então, pacientes masculinos deveriam ter também ).
Partimos da estranheza de Freud só ter mencionado o complexo de Édipo na correspondência com Fliess, logo após ele ter desacreditado suas pacientes. Vou procurar esclarecer esta questão
Freud afirmou em que a sexualidade infantil na fase fálica é igual à sexualidade adulta, a menos de que, na menina, o erotismo é clitoriano, não ainda vaginal.
“…a existência de uma ‘organização genital’ chamada fálica, antes do período de latência, com a única diferença relativamente a organização genital post-pubertária, de que para os dois sexos só um órgão genital conta: o falo” (Pontalis & Laplanche,p.241)
Palavras de Freud:
“Essa fase fálica é, ao mesmo tempo, a do complexo de Édipo.” (Freud, 2025)
Se o incesto não é fantasia, com vimos. então, se a menina ama o pai e tem sexualidade semelhante à de um adulto, ela iria, igual a um adulto, gostar das carícias eróticas do pai. Não há nisto nem sombra de abuso sexual. Quer dizer que o complexo de Édipo, com seus componentes eróticos, destrói o abuso sexual. Freud precisou negar a realidade do abuso sexual, afirmando que se tratava de fantasias, para que o complexo de Édipo pudesse existir
Ferenczi constatou a realidade do abuso sexual, mesmo incestuoso, e que as crianças vítimas ficavam traumatizadas. Então elas não gostaram, então não poderiam ter uma sexualidade igual a de um adulto, tinham a linguagem da ternura, não a linguagem da paixão. Só é possível o trauma se existe um diferença entre o adulto e a criança, com relação à sexualidade. Consequentemente o complexo de Édipo não existe , porque nele as sexualidades do adulto e da criança são equivalentes.
Não estou afirmando que não existe sexo na infância, apenas que ele é bastante rudimentar, comparado a sexualidade pós pubertária, e não tem a força de criar um complexo de Édipo, nem neurose, nem psicose, nem perversão.
Ferenczi fui um precursor dos tempos atuais. O abuso sexual voltou com o artigo inaugural de Roland Summit, A Síndrome de Adaptação ao Abuso Sexual Infantil”, de 1983, a noção de apego de John Bowlby equivale à linguagem da ternura de Ferenczi, uma grande equipe, que tem Bessel van der Kolk e Onno van de Hart entre as principais figuras, desenvolveu a compressão do trauma. As noções freudianas de desenvolvimento libidinal, fase oral, sádico-anal, fálica, complexo de Édipo, despareceram do glossário das publicações psicanalíticas internacionais pós Lacan, (a menos de algumas poucas publicações francesas.) (1)
Notas
A ideia de Jean Laplanche de que espontaneamente não existiria uma sexualidade infantil, mas que esta seria implantada pela Sedução proveniente do adulto, poderia levar a pensar que ele pensa como Ferenczi. Nada disto, pois uma vez implantada, para Laplanche, a sexualidade infantil passaria a existir com a mesma força que tinha em Freud. Em Ferenczi ela não existe nesta dimensão.
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Wilson de Campos Vieira
Psicólogo
Freud S. L’organisation génitale infantile. [consulté le 06/01/2025. Disponible sur internet: http://psycha.ru/fr/freud/1923/genitale.html )Parker, H., & Parker, S. (1986). Father-daughter sexual abuse: An emerging perspective. American Journal of Orthopsychiatry, 56(4), 531.
PONTALIS, J. B., & LAPLANCHE, J. (2001). Vocabulário da psicanálise. Santos: Martins.
Pusey, A., & Wolf, M. (1996). Inbreeding avoidance in animals. Trends in Ecology & Evolution, 11(5), 201-206.
9] Freud S. L’organisation génitale infantile. [consulté le 16/08/2017]. Disponible sur internet:
http://psycha.ru/fr/freud/1923/genitale.html
[10]. Freud S. La disparition du complexe d’Œdipe. [consulté le 16/08/2017]. Disponible sur internet: