A Atuação do Psicoterapeuta em Contextos de Alta Litigiosidade: Reflexões sobre Ética e Prática Clínica
A Atuação do Psicoterapeuta em Contextos de Alta Litigiosidade: Reflexões sobre Ética e Prática Clínica
Nos dois artigos anteriores, publicados por nos nesta página da ABRAP, exploramos as dinâmicas psicológicas subjacentes aos casos de separação litigiosa. Em 2000, em nossa tese de doutorado, publicada posteriormente em formato de livro Disputa de Guarda e Visita: No Interesse dos Pais ou dos Filhos? (CASTRO, 2013), identificamos que déficits de mentalização eram comuns em casos de disputa de guarda. Naquela ocasião, essa observação foi embasada na teoria de Pierre Marty (1990) , que associa a mentalização à capacidade de simbolizar e processar emoções. Posteriormente, tivemos maior acesso à teoria de Peter Fonagy (2005) que ampliou o conceito, definindo-o, grosso modo, como a habilidade de compreender tanto os próprios estados mentais quanto os dos outros.
Embora não haja espaço neste artigo para uma comparação detalhada entre os conceitos de mentalização propostos por Pierre Marty e Peter Fonagy, é importante destacar que pontos de intersecção entre eles. Os dois reconhecem a relevância da capacidade de compreender estados emocionais, ainda que abordem o tema de diferentes perspectivas. É na convergência teórica dessas diferentes perspectivas sobre mentalização, que fundamentamos nossa análise atual dos casos de alta litigiosidade. Observamos que falhas na mentalização dificultam, com frequência, a resolução de conflitos entre as partes envolvidas, afetando não só o ex-casal, mas principalmente os filhos.
No segundo artigo, ainda no âmbito da psicanálise contemporânea, destacamos a teoria do apego, analisando como as vivências da infância influenciam os tipos de apego que formamos e como seus diferentes tipos impactam não apenas nossas escolhas amorosas, mas também na forma como vivenciamos uma separação.
Em ambos os artigos anteriores, mencionamos como os processos de intervenção psicológica nesses casos podem ser de grande valia, com destaque especial para as intervenções psicoterapêuticas.
Neste terceiro artigo, propomos uma reflexão sobre algumas armadilhas em que os psicoterapeutas, muitas vezes de boa-fé, podem cair ao lidar com casos altamente litigiosos. Tais situações podem levá-los a dilemas eticamente complexos, muitas vezes sem que tenham plena consciência desses aspectos. Após discutirmos como as teorias da psicanálise contemporânea auxiliam a compreender os conflitos, agora nos centraremos em alguns dos desafios éticos enfrentados pelos psicoterapeutas em seu cotidiano clínico, em especial o psicoterapeuta de criança, além dos cuidados necessários ao atender casos que também estão sendo discutidos na Justiça.
Conflitos litigiosos entre ex-casais apresentam desafios éticos complexos. É fundamental que o psicoterapeuta compreenda que os indivíduos ou famílias com os quais trabalha também estão inseridos em um contexto judicial, onde seu trabalho não apenas pode ser afetado por decisões legais, mas também pode impactar diretamente as questões em discussão na Justiça.
É primordial que o psicoterapeuta se conscientize de que a dinâmica familiar em litígios judiciais é marcada, em grande parte dos casos, por uma série de questões delicadas, como divórcios litigiosos, violência doméstica, abuso e/ou negligência parental e alegações de alienação parental – tema cercado de controvérsias. Nem sempre o psicoterapeuta possui formação ou experiência para lidar com esses aspectos, como destacaram Greenberg, Fidler e Saini (2019), em seu trabalho citado no artigo In Focus: Therapy in a Child Custody Case. Para aqueles que desejam explorar mais a fundo essas questões, os autores aprofundam-se no livro Evidence-Informed Interventions for Court-Involved Families (2019), que reúne estratégias baseadas em evidências e práticas inovadoras para auxiliar famílias envolvidas em processos judiciais.
É frequente observamos que, após a instauração de um litígio entre os genitores no âmbito do Poder Judiciário, apenas um deles busca a psicoterapia para o filho, sem dar ciência ao outro genitor. Essa atitude pode ser movida tanto por boa quanto por má-fé Neste contexto, é natural que esse genitor apresente ao psicoterapeuta apenas a sua perspectiva dos fatos que levaram ao litígio, bem como suas percepções acerca das dificuldades enfrentadas pela criança e sua relação com as questões judiciais.
Todavia, há situações em que o psicoterapeuta, possivelmente influenciado pela percepção de que o cliente é o genitor responsável pelo pagamento dos serviços e não a criança, deixa de estabelecer contato com o outro genitor. Esse comportamento pode resultar na exclusão de uma perspectiva importante trazida pelo segundo genitor, que, muitas vezes, só toma conhecimento do processo psicoterapêutico da criança após um longo período – e, ainda mais preocupante, por meio de um documento elaborado pelo psicoterapeuta e anexado aos autos judiciais.
É importante destacar que, embora o Código de Ética do Psicólogo, no Art. 8º, referente às responsabilidades do psicólogo, estabeleça que “para realizar atendimento não eventual de criança, adolescente ou interdito, o psicólogo deverá obter autorização de ao menos um de seus responsáveis, observadas as determinações da legislação vigente”, a Resolução CFP nº 13/2022, que dispõe sobre Diretrizes e Deveres da Psicoterapia, vai além. O Art. 12 dessa resolução deixa claro que, “ao prestar serviços de psicoterapia à criança e ao adolescente, a psicóloga e o psicólogo devem: III – propor a participação dos responsáveis no processo psicoterapêutico da criança ou do adolescente e acioná-los sempre que se fizer necessário.” Esse dispositivo reforça a necessidade de envolver ambos os responsáveis sempre que possível, garantindo que a perspectiva de ambos seja considerada no processo psicoterápico.
Dessa forma, o psicólogo que não propõe a participação de ambos os genitores, conforme estabelece a Resolução CFP nº 13/2022, pode estar infringindo normas éticas importantes, em especial quando sua omissão prejudica o direito do outro genitor de participar do processo psicoterapêutico e de zelar pelo bem-estar da criança. Essa prática também é amplamente criticada na literatura especializada. Como apontam Greenberg, Fidler e Saini (2019), “um dos erros mais comuns (e arriscados) nesse tipo de caso é um terapeuta tratar uma criança com o conhecimento e consentimento de apenas um dos pais.” Segundo os autores, a falta de consulta ao outro genitor pode violar seus direitos, comprometer a avaliação precisa da situação e levar a consequências graves, como desacreditação do trabalho terapêutico, ações judiciais e até sanções éticas. Por isso, é recomendável que os psicoterapeutas busquem compreender o contexto legal do caso, incluindo ordens de custódia e acordos parentais, garantindo assim uma atuação ética e equilibrada.
Além de prejudicar o processo psicoterapêutico da criança, os impactos dessa prática – de ouvir apenas um lado da história – vão muito além. É comum que o genitor que inicia o processo terapêutico solicite ao psicoterapeuta um relatório sobre o acompanhamento, ou até mesmo peça que o documento aborde questões como a existência de abusos, negligência, alienação parental, entre outros. O problema se agrava quando o psicoterapeuta, sem ouvir o outro genitor, emite um documento no qual faz afirmações categóricas sobre uma pessoa que nunca entrevistou. Muitas vezes, esses documentos são elaborados sem atender às diretrizes estabelecidas pela Resolução do CFP nº 6/2019, que regula a elaboração de documentos psicológicos, e acabam apresentando diagnósticos inadequados e pouco fundamentados, dentre outros problemas.
Além disso, questões como abuso sexual, negligência e maus-tratos, amplamente discutidas no âmbito jurídico, demandam uma avaliação técnica específica e rigorosa. Quando o psicoterapeuta ultrapassa os limites de sua formação ou prática, emitindo pareceres sobre esses temas sem as devidas precauções, o resultado pode ser desastroso. Documentos desse tipo frequentemente alimentam teses judiciais de forma parcial, prejudicando uma avaliação judicial neutra, que utiliza técnicas adequadas para evitar sugestionamento ou falsas memórias.
Isso é calamitoso porque pode levar a consequências que podem ser irreparáveis. Um genitor inocente, sem ter passado por uma avaliação imparcial, pode, por exemplo, ser condenado criminalmente por algo que não cometeu, perder a guarda do filho ou até ter as visitas suspensas. Essas decisões, baseadas em documentos pouco fundamentados ou enviesados, não apenas comprometem o vínculo entre o genitor e a criança, mas também prejudicam o sistema de Justiça, que depende de avaliações técnicas neutras e éticas para orientar suas decisões.
Embora este artigo tenha se restringido a alguns desafios dos psicoterapeutas de crianças, é importante destacar que os psicoterapeutas de casais e de adultos também enfrentam problemas éticos. A quebra da confidencialidade, o uso de informações privadas em processo judicial, o risco de adotar posições que favoreçam o litígio, são exemplos de questões que requerem cuidados éticos, como bem destacou o excelente estudo Separation et Divorce Très Conflictuels, 2004.
Para concluir, enfatizamos que o trabalho do psicoterapeuta que pode ser tão útil e importante nos casos de alta litigiosidade, como destacamos nos artigos anteriores, exige tanto competência técnica quanto um profundo compromisso ético, além do conhecimento do código de ética do psicólogo e das Resoluções do Conselho Federal de Psicologia. A prática inadequada, muitas vezes movida pela boa-fé, pode gerar consequências sérias para a família, para o sistema legal e para os próprios profissionais. É fundamental que o psicoterapeuta busque atuar de forma neutra, buscando priorizar o bem-estar da criança.
O psicoterapeuta deve investir em formação continuada e na supervisão dos casos, garantindo que possa atuar para promover a resolução dos conflitos e não os intensificar. Desta forma, podemos construir práticas que sejam humanas e éticas.

Lidia Rosalina Folgueira Castro
Membra da Comissão de Ética do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, membra fundadora da “Asociácion Iberoamericana de Psicología Jurídica” e atual representante brasileiro e membro diretivo da ABRAP (Associação Brasileira de Psicoterapia).
MARTY, Pierre. La psychosomatique de l’adulte. Paris: Presse Universitaires de France, 1990.
FONAGY, Peter; GERGELY, Gyorgy; JURIST, Elliot. Affect regulation, mentalization, and the development of the self. New York: Other Press, 2005.
GREENBERG, L.; FIDLER, B. J.; SAINI, M. A. In Focus: Therapy in a Child Custody Case. Separation and Divorce Research, 2019.
GREENBERG, Lyn R.; FIDLER, Barbara J.; SAINI, M. A. (Eds.). Evidence-Informed Interventions for Court-Involved Families: Promoting Healthy Coping and Development. New York: Oxford University Press, 2019.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília, 2005. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo-de-etica-psicologia.pdf. Acesso em: 20 jan. 2025.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP nº 13, de 15 de junho de 2022: estabelece diretrizes e deveres da psicoterapia realizada por psicóloga e por psicólogo. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 15 jun. 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-13-de-15-de-junho-de-2022-408911936. Acesso em: 20 jan. 2025.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP nº 6/2019: institui regras para a elaboração de documentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional e revoga a Resolução CFP nº 15/1996, a Resolução CFP nº 07/2003 e a Resolução CFP nº 04/2019. Disponível em: https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-6-2019. Acesso em: 20 jan. 2025.
CANADÁ. Ministère de la Justice. Séparation et divorce très conflictuels: options à examiner. Ottawa: Ministère de la Justice, 2004. Disponível em: https://www.justice.gc.ca/fra/pr-rp/lf-fl/divorce/2004_1/2004_1.pdf. Acesso em: 20 jan. 2025.