Por Arianne
Angelelli.
“Eu
quero a revolução
mas antes quero um ritmo”
Adelia
Prado
Conheci um menino
que acaba de ganhar um irmãozinho, ainda antes de desmamar. Perto de fazer 2
anos, mama antes de dormir, já come bem e vai à escola, brinca e fala. Mas, com
essa novidade tremenda na sua casa, agora reluta em dormir. A mãe, cansada, que
amamenta o dia todo o menorzinho, precisa que ele compreenda esse novo limite.
Conta que agora ele não quer deixar de sugar, fica por muito tempo “grudado” no
peito. Conheci também uma mocinha que só consegue dormir com o celular do lado,
vendo sua série favorita. Acorda cedo para a escola e sente sono nas duas
primeiras aulas. Os pais pensaram em alguma maneira de desconectar a internet
dela depois das 22h. Mas ela, esperta, usa a rede da vizinha. E tem o jovem que
combina de jogar vídeo game on line com os amigos e passa da meia noite
facilmente- inclusive descobriu um jeito de fingir dormir para depois levantar
na calada da noite para voltar ao jogo. Numa noite o pai acordou indisposto e
foi aquele Deus-nos-Acuda. Quanto mais limites ao jogo os pais colocam, mais
aumenta seu desejo de jogar… Por outro lado, a mãe de um mocinho muito parecido
com este outro dorme somente com o seu “Stilnox”. Como ela, outros tantos vêm
desaprendendo a dormir e se descuidando dos rituais saudáveis que o dormir pede
ao corpo: não precisa diminuir o ritmo, se tem um indutor de sono a disposição.
Voce pode estar “à mil” e daí BUM :
basta tomar o remedinho, para dormir em cinco minutos.
Conheço também um
cara muito bacana, pai de dois filhos, que não almoça nem toma café da manhã.
Até as duas, três da tarde, passa com café e cigarro, não sente fome. De noite
faz uma lauta refeição. Ele é magrinho, mas um outro senhor que conheci teve de
fazer cirurgia bariátrica, aquela da redução de estômago. Tinha os hábitos
semelhantes, estava muito obeso e comia somente de manhã e muito tarde à noite;
pois passava o dia na sua loja dentro da estação do trem sem nenhuma pausa para
lanchar ou descansar. Tudo que é simples (ou deveria ser) no corpo, depende de
um certo ritmo. Dormir e acordar. Comer, trabalhar, descansar. Ir ao banheiro
todos os dias. Uma amiga começa sua segunda graduação. Sente que perdeu muito
tempo, por isso estuda todos os dias, inclusive sábado, domingo. Muitas horas
seguidas. Não percebe que sua capacidade de concentração flutua, e sem fazer as
devidas pausas acaba por gastar parte do seu tempo de forma contraproducente. Se
sente muito cansada, ansiosa.
Ritmos. Pausas.
Cadências. Cada pessoa tem a sua necessidade de sono, de sexo, sua fome, sua
capacidade de concentração. Alguns se sentem muito mais espertos de noite,
outros se irritam muito quando passa a hora de comer, ou tem enxaquecas. No
filme ”O Novíssimo Testamento” a menina divina escuta o coração de cada pessoa
e diz a música que ouve em cada um. Cada um de nós teria um ritmo, uma melodia
particular. Mesmo no jeito de falar diferem as pessoas. Nas pausas para respirar.
No fluxo do pensamento. E os bebês já tem seus ritmos dentro do ventre materno.
Bebês e mães podem ter os seus ritmos semelhantes, sincronizando facilmente, ou
nem tanto. Existem bebês que adoram barulho, passear. Outros tem um
temperamento mais arredio. As sensibilidades também variam, muitíssimo: ao som,
ao calor, aos estímulos do ambiente. Mas a descontinuidade e as mudanças de
estado sempre incomodam os bebês. Quando são trocados, quando são despidos,
quando são despertados. Um pouco como nós… quem nunca sentiu um desprazer
quando o despertador toca, quando o feriado acaba, quando esfria de repente.
Quanto mais imatura
a pessoa, mais difícil para ela lidar com as mudanças, as imposições do meio e
dos outros, as mil interrupções da vida. Um bebê precisa de outro alguém a lhe
garantir um ambiente reassegurador, tranquilo, e esta tranquilidade advém de
muitos fatores: um deles o ritmo.
Cedo a mente humana
aprende a perceber os padrões ritmicos do ambiente; e dentro do corpo somos
também ritmo: respiração e coração. Mas o que é o ritmo? Ritmo é o contraste
entre presença e ausência, continuidade e descontinuidade, na presença de certo
padrão, no tempo. O que marca um ritmo é a repetição. A compreensão de padrões,
mesmo que de forma intuitiva- ou principalmente desta forma-torna possível
suportar a ausência e a falta, preencher as lacunas e as esperas; e é por isso
que no cuidado com os bebês pequenos a rotina é algo tão importante. O balançar
acalma, o ninar é rítmico, a fala humana ao se dirigir a um bebê adquire uma
tonalidade especial. Ao longo dos dias e do seu desenvolvimento, a criança,
apoiada na previsibilidade dos ritmos maternos e do ambiente, aprende em pouco
e pouco a tolerar e a esperar.
”No início o ritmo é um recurso para superar
a violência da descontinuidade acalmando o bebê por meio da pluralidade de
atividades rítmicas (balanço, sucção, canto de ninar, etc.). As experiências do
bebê fazem-no confrontar-se com rupturas, descontinuidades, momentos de
presença dos objetos que se alternam com ausências. Para evitar que isto se
revele traumático, é a ritmicidade da alternância presença/ausência que vai
sustentar o crescimento mental”. Para
Vitor Guerra, autor da citação acima, a ritmicidade promove uma ilusão de
permanência e continuidade verdadeiramente estruturantes para o psiquismo
inicial.
Aquele menino se
apega ao seio pois não está suportando agora, com a chegada do irmão, uma dose
extra de descontinuidade em sua vida. Adolescentes tem dificuldade em
des-logar, desligar, e se desorganizam facilmente. Adultos, também. Estamos
demasiado acostumados com as máquinas. Comer, dormir, defecar, descansar: o
corpo nos exige essas pausas que o ambiente moderno, que não pára de funcionar,
nos nega. O Unibanco já era de 30 horas, antes de ser comprado pelo Itaú,
imagina agora. E ninguém escuta mais o Adoniran que não quer perder o trem das
onze. O trem das onze é o trem do sono: passou, perdeu, perdeu o sono. Não são
apenas os bebezinhos que precisam do ritmo e da rotina para se organizarem. Num
nível profundo e possivelmente relacionado ao próprio desenvolvimento da mente,
o ritmo aparece com elemento estruturante e organizador. Na vida adulta, ainda
precisamos do ritmo e o buscamos para atingir estados mentais mais tranquilos,
respirando, aprendendo a esperar e acolhendo os limites do nosso corpo, das
nossas necessidades mais profundas, da finitude e da falta que nos constitui,
humanos.
Para saber mais
sobre o pensamento de Victor Guerra:
Originalmente
publicado em:
http://www.gestoespontaneo.com.br/2019/05/26/ritmo-um-organizador-do-psiquismo/