(Originalmente foi publicada no Gesto Espontâneo – psicanálise e cultura
www.gestoespontaneo.com.br)
Por que você não chora?
Odelis Basile (*)
Assisti o longa-metragem brasiliense que concorre
ao prêmio Kikito no Festival de Cinema de Gramado, 2020 “Porque você não
chora?” (2020), de Cibele do Amaral. O filme trata, principalmente, da questão
do suicídio e da formação do psicólogo.
A trama do filme se passa entre a personagem
Bárbara, uma mulher explosiva, com Transtorno de Personalidade Borderline, e a
estagiária de psicologia, Jéssica, sua Acompanhante Terapêutica; uma mulher introspectiva
que tenta driblar calada seu sentimento de solidão e abandono.
O filme relata a relação que se estabeleceu entre
elas e os questionamentos que esta relação produziu em cada uma delas. A
fragilidade e o sofrimento psíquico, diante das perdas e frustrações, é intrínseco
a nossa condição humana. Porém, se somos acolhidos e sustentados pelo ambiente
na nossa dor, faz muita diferença no nosso viver criativo.
Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, separa a
noção de criação e de obras de arte. Criações são uma pintura, uma música, uma
refeição preparada em casa, o cuidado com o jardim entre outras. Mas ele se
refere à criação que é universal e faz parte do estar vivo. É o modo como o
indivíduo aborda a realidade externa e como ele se torna protagonista da sua
vida. Crescer como ser humano que se sente vivendo realmente a sua própria
vida, com o caminhar autêntico.
No filme, as duas mulheres sofreram dificuldades no
cuidado materno desde a mais tenra idade. Segundo Winnicott, o holding é uma
das funções da “mãe suficientemente boa”. Ela contém, aguenta, resiste e apoia
o bebê frente às ansiedades que ele vive. São os cuidados essenciais para o
desenvolvimento saudável da criança. Bárbara foi abandonada pela mãe e Jéssica
apresenta uma mãe pouco responsiva, que tem a comunicação com palavras ou
gestos entre elas totalmente truncada. Como diz Winnicott, ocorreu um fracasso
no estabelecimento da capacidade pessoal para a vida criativa.
Bárbara tem um filho e por ele luta para estar viva
e manter seu vínculo com ele.
Jéssica, por outro lado, encontra-se no extremo da
submissão, onde sente sua vida como insatisfatória e não pode se enriquecer por
meio das experiências que vive. Assim, nada tem de relevante no viver de
Jéssica. Tudo está oculto e não dá sinais de existência. Apenas ela se sente
impotente diante da realidade porque seu mundo interno é povoado por sombras de
medo e desamparo vividas desde a mais tenra infância.
Chama a atenção no filme a pouca fala de Jéssica,
seu desamparo frente à vida, sua solidão, sua falta de relações afetivas e o
seu desconhecimento do outro. Ela cuida de uma irmã que estima, mas não sabe o
que sente em relação a ela mesma e também em relação à irmã.
O relacionamento de Bárbara com Jéssica traz à tona
o sofrimento psíquico que ela ignorava e, assim, se mantinha calada. Agora,
esses sentimentos permeiam seus sonhos e a assustam.
Jéssica, apesar de ter sido orientada por sua
supervisora para fazer psicoterapia, decide não fazer e, assim, se deixa
dominar por esse sofrimento reeditado e potencializado pelo seu relacionamento
com Bárbara.
Olhando o filme por outro vértice, ele dá ênfase à
importância para a formação do psicólogo, o estudo teórico, a supervisão
clínica e a psicoterapia, que é um recurso, não só para a elaboração das
próprias limitações e potencialidades mas, também, para a internalização da
teoria e da prática clínica.
É um bom filme que trata do sentimento de não
pertencimento, da solidão, do desamparo e da importância do olhar do outro para
que o indivíduo possa ter um viver criativo.
(*) psicóloga pedagoga e psicanalista. Especialista
em psicoterapia psicanalítica pela USP-SP, especialista em psicoterapia
psicodinâmica com base psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae - São
Paulo.