Quando
o paciente de minoria racial encontra o terapeuta branco: microagressões
raciais e competência multicultural em psicoterapia
Thaíse Mendes Farias – Psicóloga,
Doutoranda em Psicologia (UNISINOS). Membro do Laboratório de Estudos em
Psicopatologia e Psicoterapia (LAEPSI) do PPG em Psicologia da UNISINOS. Coordenadora
do Núcleo de Processos Clínicos e Psicossociais da Subsede Sul do Conselho Regional
de Psicologia do RS.
Fernanda Barcellos Serralta
- Psicóloga,
Doutora em Ciências Médias: Psiquiatria (UFRGS). Coordenadora do Laboratório de
Estudos em Psicopatologia e Psicoterapia (LAEPSI), professora e pesquisadora do
Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS), RS.
Num passado não muito distante, raça era um termo
cientificamente usado para classificar a variabilidade humana segundo,
principalmente, o tom de pele - além de outras categorias morfológicas e
químicas, como formato do crânio, nariz, queixo, tipo sanguíneo, doenças
hereditárias. O aprofundamento dos estudos biológicos e genéticos levou os
pesquisadores à conclusão de que o conceito carece de suporte científico
(Munanga, 2010). Entretanto, a ideia de raça ainda exerce um
impacto concreto na vida de minorias raciais, ao alicerçar um modo de vista e
ação negativos com base no fenótipo dos membros destes grupos.
Miranda (2013) sugere que o racismo pode ser compreendido à luz da corrente
psicanalítica das relações objetais como relacionado à posição
esquizoparanoide, cujas características centrais são a utilização de mecanismos
primitivos, como a projeção, cisão, e identificação projetiva, para separar
aspectos bons e maus, e assim buscar proteger-se dos perigos. No modelo, tais
perigos decorrem, principalmente, da ação das próprias tendências destrutivas
do psiquismo. Nesse sentido, o racismo operaria numa lógica primitiva em que ao
“outro”, os sujeitos das minorias raciais estariam cheios de “coisas ruins”,
como se não fossem suficientemente humanos, e sim figuras anômalas, ruins, perigosas
e ameaçadoras. Por outro lado, a negação e a onipotência apoiariam o senso de “paranoia”,
permitindo a representação de si mesmo como “totalmente bom”. Assim, na construção da raça via
processo soturno de realidade defensiva, o sujeito branco apaga a subjetividade
do preto e do pardo (Altman, 2009), retirando a sua humanidade.
Atualmente, com a moralização e tipificação criminal
de algumas atitudes racistas, cada vez mais interiorizamos a ideia de que o
racismo é uma forma de desumanização, uma violência e um posicionamento/atitude
repreensível. Porém, ainda somos atravessados por uma lógica racista e
edificados para compreender “o outro”, da raça “inferior”, como um inimigo e,
dessa forma, podemos reproduzir e perpetuar o racismo, ainda que
inconscientemente.
Nesse artigo refletimos sobre o fenômeno do racismo em
microescala, as chamadas microagressões raciais (Sue et al., 2007), a sua
expressão na clínica e a necessidade de desenvolver competências multiculturais
entre psicoterapeutas. Pesquisas indicam que as pessoas de minorias raciais
sofrem mais de problemas de saúde mental e física em comparação com as brancas,
tendo-se percebido que a discriminação é associada a resultados negativos na
saúde física e mental (Smolen & Araújo, 2017). Entretanto, no Brasil, o
campo das questões raciais ainda é pouco explorado nos seus mais diversos
âmbitos, e, especialmente, no que diz respeito aos efeitos do racismo sobre a
saúde mental (Tavares & Kuratani, 2019).
Esta é uma lacuna teórica e prática relevante, pois, se o terapeuta não
pode ou não quer reconhecer o racismo como produtor de adoecimento, ele pode
estar contribuindo para a manutenção das discriminações decorrentes do
preconceito e da discriminação racial, aumentando o sofrimento psíquico de seus
pacientes.
A literatura indica que a discriminação racial
estrutural é associada a problemas de raça, poder, privilégio, idioma e
sensibilidade cultural, podendo influenciar o relacionamento da díade
paciente-terapeuta. Existem marcadores visíveis de diferenças nos pares
terapêuticos (gênero, idade, classe social), sendo a raça e a etnia
consideradas marcadores especialmente salientes tanto para o cliente quanto
para o terapeuta. Apesar dos inúmeros aspectos positivos advindos do aumento do
contato inter-racial, pesquisas têm descrito o desconforto com que terapeutas
brancos têm lidado com as diferenças raciais, comparadas a outras diferenças
sociodemográficas (Chang & Berck, 2009).
As microagressões raciais são agressões sutis, muitas
vezes inconscientes, que psicoterapeutas perpetram contra os pacientes das
chamadas minorias raciais (negros, indígenas etc.). Podem ser expressas como microataques
(comportamentos inconscientes, inclusive verbais, que depreciam herança racial
de uma pessoa), microinsultos (atitudes racistas conscientes e explícitas,
porém frequentemente não reconhecidas como racistas pelos perpetuadores) e
microinvalidações (comportamentos inconscientes que negam ou minimizam as
realidades vividas pelas minorias raciais)
(Wong et al., 2014). Tais agressões são tão difundidas e automáticas nas
conversas e interações diárias que geralmente são dispensadas e encobertas como
sendo inocentes e inócuas. No entanto, são prejudiciais porque causam sofrimento
(Sue et al., 2007), podendo produzir iatrogenias.
Diversos autores (Constantine, 2007; Miranda, 2013; Tao
et al., 2015, Okosi, 2018) tem se ocupado em elucidar como as microagressões
podem operar nas sessões de psicoterapia, por meio do exame da percepção dos
pacientes que sofreram microagressões raciais de seus terapeutas. Com base nas
categorias desses estudos, elencamos alguns dos modos pelos quais psicoterapeutas
podem agredir pacientes culturalmente distintos de si: cegueira racial (negação
das experiências raciais/culturais suas e do paciente), patologização de
valores culturais e imposição de estilo comunicação (quando terapeuta impõe seu
conjunto de valores, transformando em anomalia os valores culturais e formas de
comunicação do paciente), atribuição de descapacidades (questionamento de
inteligência ou competência, estabelecimentos de rótulos intelectuais com base
na raça do paciente), suposição de superioridade (generalização das
experiências de pessoas não brancas, tratando-as como um “pacote de problemas”
por causa da sua raça), invisibilidade (indicadores verbais e não verbais da
falta de conexão e compreensão que ensejam rupturas precoces do processo),
estrangeirização (comentários que comunicam um senso de "outro", de
separação).
Nessa perspectiva, poderia se inferir que psicoterapeutas
que não exploram os seus próprios preconceitos e falham em compreender como as
questões raciais e culturais influenciam o processo terapêutico, não irão
trabalhar de forma razoável (ou suficientemente terapêutica) as experiências de
preconceito e discriminação vividas pelos seus pacientes de minorias raciais
e/ou culturais. Esta reprodução do estranhamento, do preconceito e do racismo,
expressa, de modo velado e não consciente, nas múltiplas formas de
microagressões já referidas muito
possivelmente poderia conduzir o processo terapêutico a impasses, rupturas e
interrupções prematuras. Aliás, estudos internacionais sugerem que pacientes
que procuram um terapeuta de raça ou etnia diferentes tem maior probabilidade
de abandonar o tratamento e comparecer a menos sessões, em comparação com aqueles
cujos terapeutas compartilham cultura e origens étnicas (Chang & Berk,
2009).
Entretanto, nem toda a psicoterapia que envolve o
terapeuta branco e o paciente de minoria racial é fracassada. Nas díades
inter-raciais bem sucedidas, fatores que aparecem são a forte aliança
terapêutica, consideração positiva incondicional, congruência, validação, capacidade
de resposta às necessidades expressas, revelação da história pessoal,
capacidade do cliente e do terapeuta de comunicar e negociar rupturas no
relacionamento, compreensão dos problemas dentro de um contexto sociopolítico
maior – o que pode exigir atenção e adaptação flexível de habilidades básicas
de terapia (Hook et al, 2016; Mosher et al., 2017).
A competência multicultural é essencial ao
psicoterapeuta. O conceito refere à habilidade deste profissional para
trabalhar efetivamente entre culturas e identidades, adaptando sua prática às
identidades culturais diversas dos seus clientes (Watkins et al., 2009). Assim,
nosso entendimento como clínicas e pesquisadoras é de que para melhorar a
qualidade dos serviços psicológicos e também para contribuir para o combate ao
racismo e outras formas de preconceito é necessário preparar os alunos e
profissionais “psi”, auxiliando-os a desenvolver abertura, humildade e conforto
diante das diferenças étnicas e culturais, reconhecendo sua riqueza e também seus
entraves, e assim ampliando a capacidade de escuta sensível e qualificada nas situações que envolvam tais diferenças.
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