Conflitos na Separação Conjugal: Reflexões sob a ótica da Psicanálise Contemporânea

Conflitos na Separação Conjugal: Reflexões sob a ótica da Psicanálise Contemporânea

A separação conjugal é uma das experiências mais desafiadoras emocionalmente, envolvendo uma série de fatores complexos: mudanças econômicas, o término de um sonho compartilhado de sucesso em uma relação afetiva, o remanejamento de amizades comuns ao ex-casal e, principalmente, a necessidade de manter uma ligação entre os ex-parceiros quando há filhos envolvidos, para que possam discutir e conduzir conjuntamente a educação das crianças/adolescentes.

A psicanálise contemporânea, especialmente por meio do conceito de mentalização desenvolvido por Peter Fonagy, oferece ferramentas valiosas tanto para o perito judicial, durante a avaliação do caso, quanto para o psicoterapeuta, no acompanhamento de situações de maior litígio. Este artigo examina como a falta ou falha na habilidade de mentalização pode impactar a elaboração dos conflitos intrínsecos à separação conjugal, baseando-se nos conceitos de mentalização propostos por Pierre Marty e Peter Fonagy.

No final dos anos 1990, ao analisar casais em conflitos judiciais na condição de perita judicial nas Varas de Família, bem como em casos trazidos pela nossa experiência clínica, identificamos que os casos mais desafiadores apresentavam uma característica em comum: uma carência significativa de mentalização (Castro, 2013).
Naquela época, utilizávamos o conceito de mentalização de Pierre Marty, que descrevia essa habilidade como um padrão de funcionamento psíquico marcado por um pensamento predominantemente concreto e pouco imaginativo, frequentemente associado a dificuldades de simbolização.

Observamos que, nos casos de litígio mais severo, os ex-casais frequentemente permaneciam presos a esse tipo de pensamento concreto, o que os impedia de elaborar suas diferenças e conflitos. Essa limitação dificultava tanto a ressignificação da união passada quanto o processo de dar um fim emocional à relação e seguir em frente de forma construtiva.

Posteriormente, tivemos contato com o conceito de mentalização desenvolvido por Peter Fonagy, renomado cientista e psicanalista, cuja obra acumula mais de 164.709 citações no Google Acadêmico no momento da escrita deste artigo. Peter Fonagy também se utiliza do termo mentalização, mas sua abordagem, embora distinta em vários aspectos da de Pierre Marty, aprofunda e amplia a compreensão do funcionamento psíquico. Ele define a mentalização como a capacidade de refletir sobre os estados mentais — emoções, intenções e crenças — tanto em relação a si mesmo quanto aos outros.

Falhas importantes na mentalização podem transformar diferenças em conflitos de difícil resolução. Os ex-casais em sérios conflitos não conseguem refletir sobre suas próprias emoções ou intenções e tampouco sobre as do outro. Tendem a interpretar mal as ações do ex-parceiro, e, muitas vezes, assumem indevidamente atitudes defensivas ou agressivas.

A falta de compreensão dos estados mentais do outro — seja do ex-parceiro ou dos filhos — frequentemente leva a interpretações equivocadas. Não é raro que um dos ex-cônjuges acredite que o outro age de má-fé, o que desencadeia um ciclo de ações e reações, muitas vezes alimentado pela lógica jurídica do contraditório. Esse conjunto de fatores, tende a intensificar os conflitos, tornando-os cada vez mais crônicos e dificultando a resolução amigável.

Por exemplo, um dos ex-cônjuges pode interpretar atrasos frequentes do outro ao buscar os filhos como um ato deliberado de desrespeito, enquanto o outro, na verdade, pode estar enfrentando dificuldades práticas, como trânsito intenso ou horários de trabalho inflexíveis. Essa percepção de má-fé pode levar a reações exageradas, como relatar o comportamento ao advogado, propor uma revisão de guarda ou até mesmo restringir o contato do outro com as crianças. Essas ações, ao invés de resolverem a situação, alimentam um ciclo de acusações mútuas, intensificando o conflito e prejudicando ainda mais o ambiente emocional dos filhos.

Estudos recentes realizados no Anna Freud Center, instituição dirigida por Peter Fonagy, têm aplicado com sucesso técnicas psicoterápicas voltadas para a melhoria da capacidade de mentalização em ex-casais em conflito. Peter Fonagy, que também é professor da Universidade de Londres, tem contribuído, juntamente com suas equipes, significativamente para o desenvolvimento dessas abordagens. Essas intervenções têm se mostrado eficazes na redução de litígios, promovendo um ambiente mais colaborativo e funcional entre os ex-parceiros.

O livro Mentalization-Based Treatment with Families (Asen & Fonagy, 2021) explora como a aplicação da mentalização em contextos familiares pode apoiar na superação de bloqueios emocionais e melhorar dinâmicas interpessoais. Embora o foco principal seja o trabalho com famílias, os conceitos apresentados oferecem fundamentos valiosos que podem ser adaptados para intervenções com ex-casais em litígio, auxiliando na transformação de padrões destrutivos em interações mais construtivas.

A capacidade de mentalizar, que já pode, muitas vezes, ter sido má desenvolvida, é especialmente prejudicada em situações de alta carga emocional, como a que observamos em litígios severos. Durante momentos de estresse intenso, como os conflitos entre o ex-casal, os indivíduos podem ter sua capacidade de mentalização prejudicada, tendo dificuldade em refletir sobre seus estados mentais e o dos filhos.

Esse fenômeno alimenta ciclos negativos de ressentimento e desconfiança, dificultando a resolução dos conflitos. Além disso, dinâmicas de triangulação infantil, como limitar o contato da criança com o outro genitor ou promover percepções negativas sobre ele, agravam ainda mais os impactos emocionais nos filhos.
Nesse contexto, o livro High-Conflict Parenting Post-Separation: The Making and Breaking of Family Ties (Asen & Morris, 2020) destaca a importância de avaliar a capacidade de mentalização dos pais, propondo a construção de um “perfil de mentalização” como ferramenta para identificar lacunas e promover intervenções eficazes. Essas abordagens são fundamentais para romper ciclos negativos e criar um ambiente mais saudável para todos os envolvidos.
Trabalhar a mentalização auxilia os genitores na construção da coparentalidade e conseguirem manter o foco no bem-estar dos filhos, em meio a um litígio conjugal.

Os benefícios desta psicoterapia incluem um aumento no grau de regulação emocional, maior capacidade de se colocar no lugar do outro e uma melhora na comunicação, dentre outros.
A promoção da mentalização tem se mostrado útil e trazido benefícios em vários níveis: para os pais, os filhos e todo o sistema jurídico. Ao desenvolverem a capacidade de refletir sobre seus estados mentais e dos outros, os pais poderão reduzir os conflitos, melhorar a comunicação e empatizarem com os filhos e, consequentemente, priorizando o bem-estar das crianças/adolescentes. No âmbito do sistema jurídico, implica numa diminuição de litígios prolongados, aliviando a sobrecarga processual, promovendo soluções mais colaborativa e dando aos genitores as rédeas de suas vidas, muitas vezes, depositadas no sistema jurídico.

Assim, a melhoria da mentalização em casais em disputa judicial tem se mostrado uma ferramenta útil para melhorar e transformar relações marcadas pelo conflito parental e prejudiciais aos filhos. Isto garante tanto o bem-estar das famílias, quanto a resolução pacífica de disputas.

Lidia Rosalina Folgueira Castro

Lidia Rosalina Folgueira Castro

Bibliografia Citada
CASTRO, Lidia Rosalina Folgueira. Disputa de guarda e visita: no interesse dos pais ou dos filhos? Porto Alegre: Artmed, 2013.

2 MARTY, Pierre. La psychosomatic de l’adulte. Paris: Presse Universitaires de France, 1990.

3 FONAGY, Peter; GERGELY, Gyorgy; JURIST, Elliot. Affect regulation, mentalization, and the development of the self. New York: Other Press, 2005.

4 ASEN, Eia; FONAGY, Peter. Mentalization-Based Treatment with Families. New York; London: Guilford Press, 2021. Edição Kindle.

5 ASEN, Eia; MORRIS, Emma. High-conflict parenting post-separation: the making and breaking of family ties. New York: Routledge, 2020.