Doença de Alzheimer: Histórias de família e análise de relatos.

Doença de Alzheimer: Histórias de família e análise de relatos.

 

Ver a película de Miguel Caraveles intitulada Elza & Fred é ter um retrato da velhice no qual muitos de nós provavelmente identificariam a sua meta para a velhice no futuro, bem como na qual desejariam poder identificar seus pais na velhice, no presente.

Fred conhece Elza numa dessas oportunidades que a vida oferece. Ele é um viúvo apático de 78 anos, enquanto ela aos 83 é jovial e adora usufruir da vida.

Elza finda por contagiar Fred com seu entusiasmo. E assim, ao longo da película, vê-se um casal de idosos explorando suas possibilidades, apesar das perdas no íntimo do ser, para aproveitar a vida com autonomia e alegria. Ao final do filme, Fred diante da morte de Elza, já previsível, uma vez que ela estava doente, usa as boas lembranças da vida com Elza para encontrar conforto e seguir em frente.

As narrativas familiares aqui enfocadas não retrataram uma bela vida como a de Fred & Elza, embora nesta houvesse dilemas, aflições, perdas, doença e até mesmo a morte. Ou seja, bela vida não significa ausência de transtornos.

Esta pesquisa teceu-se a partir de Histórias de Família, narradas pelos familiares que viviam com um idoso com DA e da análise destes relatos.

A perspectiva fenomenológica foi a escolhida para realizar a análise dos relatos pois, segundo Giorgi (1978) este é o referencial adequado quando se foca o ser humano. Para a execução desta utilizou-se a proposta para uma Análise em Etapas, de Giorgi (1985).

Esta investigação, entretanto, não deixou de ter uma tese na qual se baseou, em função da importância desta para a saúde mental. Tese esta que adveio da ideiaformulada por Linares (2002) o qual, a partir de sua prática e pesquisas afirmou que as narrativas familiares que permitem uma condição favorável para o crescimento, amadurecimento, bem-estar e saúde mental dos seres humanos são aquelas onde se encontra o reconhecimento, valorização, carinho/ternura. Estes são os elementos nomeados por Linares como constituintes do substrato da nutrição relacional, fundamental para haver saúde mental.

E assim, guiando-se pelo objetivo de conhecer o fenômeno – a vivência dos familiares com um idoso com DA que por sua vez permitiria atingir o segundo objetivo desta Tese – conhecer os fatores que favorecem ou bloqueiam a nutrição relacional, realizou-se esta investigação.

Tomou-se então para realizá-la as afirmações de cada uma das 10 famílias entrevistadas e gravadas em fita cassete. Numa primeira entrevista sem a presença real do idoso, e na segunda entrevista quando a família interagiu, na presença real do idoso, enquanto realizavam uma atividade que resultou em duas fotografias: 1) para uma situação hipotética do passado, em momento anterior aos primeiros indícios da doença; 2) para uma situação do presente.

Pôde-se então compreender o que vivia a família que enfrentava a doença de Alzheimer, a forma mais comum de demência senil do tipo irreversível. Esta compreensão decorreu do desvelamento dos significados desta convivência, através da análise dos relatos verbais e não-verbais.

Evidenciou-se neste trabalho, que todas as famílias manifestaram ter dificuldade para conviver com o idoso com DA.

Pode-se concluir que as famílias conheciam os efeitos da DA, mas não se encontrou dados que permitissem afirmar seu conhecimento sobre aquilo que causava tais efeitos.

Experimentavam por sua vez o desânimo frente aos resultados insatisfatórios no trato com o idoso mesmo quando através de Regina, da família Souza, veio a frase: “se ficava dando voltas”, pois a condição orgânica da DA era desconsiderada.

Estas famílias vivenciam a impotência, ao não saberem o que fazer consigo mesmo, nem com o idoso. No entanto, tanto a impotência como o desespero apareceram encobertos por uma série de certezas que eram necessárias para que pudessem se guiar e assim seria contida a aflição.

Os significados desvelados a partir dos dados, também evidenciaram que todas as famílias reconheciam efetivamente a interferência dos esquecimentos, repetições, recusas, queixas e confusões do idoso com DA, mas somente a partir do momento que causavam um incômodo na família, em função da pressão gerada sobre a organização vigente eram interpretados como anormalidade.

Pôde-se ainda, através dos dados, evidenciar-se a contradição sobre o estado do idoso quer emocional quer cognitivo.

Supõe-se que outros fatores além do reconhecimento do estado emocional e cognitivo do idoso devem intervir ocasionando esta contradição. Entre estes fatores pode estar o significativo grau de dificuldade para saber agir com um idoso com DAcomo já foi descrito no corpo deste trabalho. Os dados ilustram quão complexa é a tarefa de interpretar aquilo que o idoso com DA mostra.

Sendo assim, os significados desvelados permitem que se conclua que o momento de se haverem com as condições reais e imprevisíveis dos idosos com DA ficava adiada enquanto usavam as justificativas que conheciam, conferindo assim um caráter de naturalidade ao que ocorria.

Uma vez que o idoso com DA não consegue expressar o que lhe passa, pode-se supor que o sofrimento deste idoso acaba sendo responsabilidade de quem o acompanha. Através de Rolland (2000) e Camdessus, Bonjean & Spector (1995) sabe-se quão avassalador é uma enfermidade crônica e irreversível.

Baeza (2003) já citada ao longo deste trabalho evidenciou à custa de sua prática que nas pessoas da família, em função de suas necessidades e das mudanças que a doença crônica provoca, são mobilizadas emoções tais como: tristeza, pena, culpa, raiva, ira. Encontrou-se nesta investigação, também essas reações emocionais. E mais, Baeza (2006) mostrou que o idoso com demência sente dor, ao mesmo tempo que desenvolveu um instrumento para auxiliar na avaliação desta dor, quando o idoso não consegue se comunicar.

No caso da DA, tem-se então dois lados, o lado da família e o do idoso. Nenhum desses lados consegue expressar aquilo que gerou o sofrimento. Experimentam então o desespero. A família atribui o seu infortúnio, o seu desespero ao idoso. Pode-se concluir que não são mesmo pessoas ruins, como temia Tereza, da Família Silva, mas sim, pessoas transtornadas. A família envia o seu desespero para o idoso, usando o modelo de Bion, que passa, então, a representar o perigo, o algoz, o sugador, o asfixiante. E aí, mesmo com substitutos, poucos minutos juntos, e o desespero retorna.

Espina e Nicolò (1995) usaram as considerações de Bion sobre a função do psicoterapeuta quando este autor usa o modelo mãe-bebê. Este mesmo modelo pode-se utilizar ao se sugerir que estas famílias necessitam de quem as acolha em suas angústias

Esta sugestão que decorre da conexão que foi possível entre os resultados apresentados, supõe a necessidade de parceria entre a família e a equipe de saúde.

A sugestão decorrente desta conexão pede que sejam feitos esforços no sentido de ampliar o atendimento à família com idoso com DA para incluir além da conduta médica, o sentido de parceira, ou seja, corresponsabilidade entre família e equipe de saúde.

Acredita-se, ser, então, necessário levar em conta que a família com o idoso com DA vivencia:

1. a agonia fruto da incompreensão da falta de lógica no idoso, emocional e cognitiva;
2. a contenção da sua agonia / terror, através de colocá-lo no idoso;
3. decorrente desta forma para contenção do terror, o idoso fica assustador / perigoso / destrutivo;
4. a desorientação diante de ora atitudes sensatas ora atitudes insensatas por parte do idoso;
5. a contenção desta desorientação através de explicações baseadas nas características do idoso no passado e ao identificá-lo a uma criança;
6. a perda do idoso do passado e de sua função na família;
7. as recordações por parte dos filhos do idoso de suas vivências em sua família de origem, incluindo seus irmãos, pais e avós quer na presença física quer imaginária deles.
8. Necessidade da criação de uma nova organização familiar, pois todo o sistema foi afetado.
9. O idoso com DA é ignorado.

Os resultados desta investigação permitem que se constate que não é tão simples, assim, saber como a família está entendendo a doença e o tratamento proposto. Leve-se, em conta, que os autores que fizeram esta afirmação não estavam se ocupando de tratar a DA, somente estavam discorrendo sobre aquilo que se precisa para tratá-la – da Família.

No entanto, os demais profissionais desta equipe multidisciplinar estarão imersos neste contexto.

A própria expansão aqui sugerida para o atendimento da família com idoso com DA sob o vértice da parceria (HILUEY, 1999, 2004) pressupõe o trabalho em equipe interdisciplinar.

Uma equipe interdisciplinar que vai se constituir através de uma dinâmica de cooperação, interação, circularidade no exercício da execução de uma tarefa comum (Vega, 1997, p. 185).

A existência da equipe interdisciplinar evidencia que se está considerando a complexidade, pois como escreve Linares:

“La complejidad hace imposible el dogmatismo; o, mejor dicho, el dogmatismo surge de la ignorancia de la complejidad”  

(Linares, 2003, p. 37).

Vale lembrar que as próprias famílias não consideravam a complexidade, o que permite supor que um esforço deverá ser feito para que se incluam nas consultas e busquem os demais profissionais necessários para tratarem-se e ao idoso com DA.

Trata-se a seguir do outro objetivo aqui proposto referente à nutrição relacional.

Graças ao desvelar dos significados sobre o sentir, pensar e agir dos familiares de um idoso com DA presentes nas narrativas familiares foi possível reconhecer-se que a admiração é um fator que gera reconhecimento, valorização e mesmo gera a disponibilidade afetiva apresentada por ternura / carinho, segundo nomeação de Linares (2002) para os componentes do substrato da nutrição relacional.

Ou seja, quando pode ser atribuída a conotação positiva a uma pessoa ou uma situação vivida pode-se encontrar os elementos que compõem a nutrição relacional nas narrativas familiares.  

Pode-se também observar que estes contextos familiares onde há um idoso com DA o qual recebe uma conotação negativa, pois é perigoso / assustador / destrutivo o fluxo de nutrição relacional fica afetado, mesmo tendo os elementos necessários para tanto

Considera-se, portanto que, ao não poder a família suportar as emoções mobilizadas na convivência com o idoso com DA ele passa a ser conotado negativamente, já que dá medo. Fica então afetado o fluxo de nutrição relacional nas narrativas familiares destas famílias.

Os resultados aqui apresentados que permitiram que se delineasse ao longo deste trabalho como convive a família entre eles e com o idoso com DA permitiu que se idealizasse a imagem gráfica 1 a seguir com a intenção de representar a prisão na qual a família está como forma de tolerar o desespero, o desamparo que vivencia. A imagem gráfica 2 sugere a possibilidade de saírem desta prisão desde que sejam amparados para poderem pensar neste desespero. O que pressupõe a existência da equipe interdisciplinar.

Equipe interdisciplinar e o espaço para acolhimento e para pensar

Esta tese permitiu escrever uma nova narrativa e novos caminhos foram sugeridos, então quem sabe…

 

Prisão como forma de se proteger do medo.

Prisão como forma de se proteger do medo.

Angela Hiluey

Angela Hiluey

Psicóloga (CRP-06/10.316);

Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Univ. Presbiteriana Mackenzie; Doutora em Educação pela Fac. de educação da Universidade de São Paulo; pós-doutorado em Terapia de Casal e de Família pela UAB- Univ. Autônoma de Barcelona-ES; psicoterapeuta de casal e de família pela Escola de Terapia Familiar do Hospital de Sant Creu e Sant Pau (UAB); credenciada psicoterapeuta no modelo relacional sistêmico pela FLAPSI- Federação latino-americana de Psicoterapia; diretora, coordenadora, docente e supervisora no curso de Pós Graduação Lato Sensu do CEF- Centro de Estudos da Família Itupeva-SP, escola associada a RELATES- Rede europeia e latino-americana de escolas sistêmicas; membro titular da ABRATEF e da APTF; membro efetivo da EFTA – Associação Europeia de Terapia Familiar; ex-presidente da ABRAP- Associação Brasileira de Psicoterapia (gestões 2017-2019 e 2019-2021
Referência bibliográfica

HILUEY, A.A.G.S. (2007). Doença de Alzheimer: Histórias de família e analise dos relatos. 285p. Tese (Pôs Doutorado em Terapia Familiar) Escola de Terapia Familiar do Hospital de La Santa Creu I Sant Pau. Universidade Autônoma de Barcelona.