Família: a complexidade da idealização e a realidade
A abordagem sistêmica oferece uma visão ampla e interconectada sobre a família, enxergando-a como um sistema em constante interação e transformação. Para compreender as famílias e aqui usamos no plural por entendermos que cada grupo de parentela irá construir a sua própria dinâmica relacional.
Por essa razão se faz necessário ir além das idealizações dos papéis, funções que habita o imaginário social e das estruturas estabelecidas como ideais, segundo Macedo (1994) ainda nos dias de hoje a família habita no imaginário coletivo sendo o refúgio seguro para onde se volta das batalhas do cotidiano, onde reina a paz, apesar de todas as evidências vivida no seio contradiga essas expectativas.
Essa imagem, amplamente difundida por normas sociais e culturais, ignora as complexidades e as dificuldades que muitas vezes surgem dentro do sistema familiar. A idealização é o campo das expectativas irreais sobre como uma família “deve” ser, gerando frustração tantos outros sentimentos negativos quando a realidade não corresponde a essas expectativas tão difundidas. Além disto, essa visão idealizada muitas vezes máscara questões como conflitos de poder, violência velada e dinâmicas tóxicas, dificultando o reconhecimento e a resolução de problemas.
Socialmente o principal papel da família é garantir que todos os seus membros tenham condições necessárias garantidas para o desenvolvimento dentro do ciclo de vida e a família em suas diversas configurações continua sendo uma instituição essencial para a formação e desenvolvimento do indivíduo. Desempenhando o papel na transmissão de valores, normas e comportamentos necessários para se estar e viver em sociedade, apesar de sabermos que em muitas situações os resultados são imprevisíveis.
Existem algumas dinâmicas relacionais disfuncionais que podem incluir padrões de comunicação que fomentam as distorções, alianças, triangulações de coalisão, rivalidades e papéis específicos atribuídos a cada membro dentro do sistema familiar. Famílias com padrões rígidos de relacionamento, ou comportamento podem sofrer com a falta de flexibilidade, o que pode gerar desestruturação e dificuldades de adaptação a novas situações.
Outro ponto a ser considerado está no poder que é exercido de forma autoritária ou coercitiva no âmbito familiar, podendo ocasionar um desequilíbrio nas relações entre os seus membros, levando a conflitos, repressão emocional e falta de comunicação aberta. A violência pode se manifestar em forma de controle psicológico, abuso emocional, manipulação, negligência ou silenciamento de emoções e necessidades.
Como parte de um sistema fechado, muitos desses comportamentos são normalizados ou aceitos como “naturais” dentro do ciclo familiar, dificultando a identificação e a ruptura desse padrão. As consequências dessa violência ocultam podem ser devastadoras, levando ao desenvolvimento de traumas emocionais profundos.
A abordagem sistêmica enfatiza que o trauma não é apenas uma experiência individual, mas algo que afeta todo o sistema. Um membro traumatizado pode desencadear reações nos outros, perpetuando um ciclo de disfunção. A longo prazo, esses traumas podem resultar em dificuldades emocionais, relacionais e até mesmo físicas, como ansiedade, depressão, baixa autoestima e problemas de saúde psicossomáticos.
Quando há uma forte indiferenciação no sistema familiar, os indivíduos dentro da família têm dificuldade em se verem como seres autônomos e independentes, sentindo-se excessivamente conectados ou dependentes emocionalmente dos outros membros, ou repetindo com os futuros membros os padrões estabelecidos de comportamentos, impedindo a diferenciação do sujeito e de seu meio, podendo ocasionar a falta de confiança em si mesmo e dificuldade de estabelecer limites saudáveis em relacionamentos externos.
É importante ressaltar que nas relações familiares com relações de poder equilibradas entre seus membros considerando o papel e a função dentro da dinâmica relacional familiar, tendem a apresentar maior coesão e colaboração entre seus membros.
A diferenciação é um processo necessário para a autonomia emocional, ela não significa cortar laços ou afastar-se da família, mas sim aprender a manter a individualidade sem perder o pertencimento ao grupo familiar. Isso inclui a habilidade de reconhecer e respeitar as próprias emoções e opiniões, mesmo que elas sejam diferentes das expectativas ou padrões familiares. A diferenciação saudável permite que a pessoa se posicione frente às situações da vida com uma identidade própria, capaz de tomar decisões e enfrentar os desafios de forma autônoma, sem depender excessivamente da aprovação ou desaprovação dos familiares.
A família, sendo o primeiro sistema social do indivíduo, muitas vezes é um espaço onde as diferenças individuais podem ser suprimidas em prol da harmonia aparente. No entanto, a verdadeira saúde relacional só é possível quando há espaço para a expressão das singularidades de cada membro.
Respeitar as diferenças individuais significa reconhecer que cada pessoa tem sua própria jornada, suas próprias crenças e formas de ver o mundo. Isso pode ser particularmente desafiador dentro da família de origem, onde as expectativas podem ser muito enraizadas. A prática do diálogo aberto e respeitoso é uma ferramenta poderosa para superar esses desafios, pois permite que as emoções sejam expressas de maneira saudável e que as diferenças sejam reconhecidas sem necessidade de controle ou manipulação.
Em uma abordagem sistêmica, o diálogo é visto como um processo dinâmico que fortalece as relações ao permitir que as partes envolvidas se expressem de maneira genuína e sejam ouvidas. Ele promove o crescimento tanto individual quanto coletivo, pois abre espaço para a transformação de padrões disfuncionais que possam existir na dinâmica familiar.
O amadurecimento emocional é um pilar fundamental na abordagem sistêmica. Ele implica na capacidade de lidar com as próprias emoções de maneira saudável, sem projetá-las nos outros ou permitir que elas dominem nossas decisões e comportamentos. No contexto familiar, o amadurecimento emocional é frequentemente testado, pois é comum que antigas feridas e dinâmicas emocionais do passado ressurgem em situações de conflito.
Amadurecer emocionalmente envolve aprender a identificar, compreender e regular as próprias emoções. Isso é essencial para estabelecer limites saudáveis e evitar a perpetuação de padrões emocionais destrutivos herdados da família de origem. Quando o indivíduo desenvolve essa competência, ele é capaz de manter uma postura equilibrada, respondendo de forma construtiva às situações de estresse ou conflito, sem se deixar levar por impulsos emocionais descontrolados.
Dentro da abordagem sistêmica, o amadurecimento emocional também está relacionado à capacidade de lidar com a ambivalência emocional, ou seja, de compreender que é possível amar alguém e, ao mesmo tempo, sentir raiva ou frustração por suas ações. Este entendimento é fundamental para a manutenção de relações saudáveis e maduras.
O indivíduo saudável é aquele que consegue integrar de forma equilibrada a lógica e os sentimentos em sua tomada de decisões, isso significa que nem a razão deve suprimir a emoção, nem a emoção deve sobrepujar a razão. A falta de equilíbrio entre esses dois aspectos pode gerar problemas nas relações familiares e pessoais.
Quando há um excesso de racionalidade, as relações podem se tornar frias e distantes, com pouca empatia e sensibilidade para com as emoções dos outros. Por outro lado, quando as emoções predominam, as interações podem ser caóticas e reativas, com pouca clareza e objetividade nas decisões e nos comportamentos.
O equilíbrio entre razão e emoção é uma habilidade a ser desenvolvida com o tempo. Ele se manifesta na capacidade de tomar decisões ponderadas, que consideram tanto os fatos objetivos quanto os sentimentos envolvidos. Isso é especialmente importante nas relações familiares, onde os vínculos emocionais são profundos e, muitas vezes, complexos.
Considerações Finais
A família, quando vista sob uma perspectiva sistêmica, revela-se muito mais complexa do que a visão idealizada sugere. As dinâmicas de poder, os papéis sociais e emocionais, as formas veladas de violência e a indiferenciação familiar são apenas algumas das forças que moldam as interações dentro do sistema familiar.
O processo de diferenciação da família de origem é fundamental para o amadurecimento emocional e a construção de uma identidade saudável. A diferenciação não implica em rompimento, mas em uma capacidade de manter uma individualidade enquanto se mantém conectado ao sistema familiar.
O diálogo respeitoso, que valoriza as diferenças individuais, e o desenvolvimento de um equilíbrio entre razão e emoção são elementos centrais para uma vida emocionalmente madura e relacionamentos saudáveis. Assim, ao cultivar esses aspectos, os indivíduos não apenas promovem seu crescimento pessoal, mas também contribuem para o bem-estar coletivo das famílias e outros sistemas dos quais fazem parte.
É fundamental que essas questões sejam compreendidas e abordadas, para que os membros da família possam se desenvolver de maneira funcional, tanto no coletivo quanto no individual. A conscientização sobre essas dinâmicas pode permitir a criação de estratégias positivas de enfrentamento nas relações, promovendo o bem-estar de todos os envolvidos.
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