Cyberbullying e Adolescência

Cyberbullying e Adolescência

No mundo das redes
É indiscutível o protagonismo que os novos recursos tecnológicos assumem em nosso cotidiano ao facilitar o trabalho das pessoas, promover encontros, diversão, difusão do conhecimento e resolver problemas com grande agilidade e pragmatismo. Do manejo do maquinário agrícola, passando pela automação industrial, plataformas educacionais, consultas por meio de telemedicina, difusão de cultos em canais de vídeos, uso de redes sociais entre outras possibilidades, vamos observando a todo momento a mediação dos dispositivos tecnológicos nas ações humanas, atuando sobre nossas demandas ao mesmo tempo que recolhem dados de toda natureza, mapeando a vida de cada sujeito, fortalecendo os algoritmos e fomentando o avanço da inteligência artificial.

Para além dos benefícios da substituição da realidade analógica pela digital, sentimos também na pele os efeitos colaterais desse novo contexto. Entre os desafios trazidos por esse cenário, o “Cyberbullying” é um dos fenômenos que vem ganhando destaque nas mídias por conta dos prejuízos que tem causado principalmente aos adolescentes. Esse é um problema que possui muitas dimensões, nenhuma solução simples, mas que precisa ser discutido, problematizado e combatido.

Bullying
O primeiro passo para iniciar a discussão sobre o conceito de cyberbullying é compreender o termo bullying, do qual ele deriva. Hoje, a popularização dessa palavra traz prejuízos à compreensão e combate, pois é comum a ocorrência de brincadeiras do tipo “ele está fazendo bullying comigo” ou comentários como “isso já existia na minha época e nós sobrevivemos”, que identificam o bullying como uma agressão pontual ou que relativizam situações graves de violência sofridas por jovens.
Foi a partir dos anos 1980 que o termo “bullying” passou a ser utilizado para identificar uma forma de violência comum, mas não exclusiva, do espaço escolar, que historicamente promoveu e ainda promove uma série de prejuízos emocionais às vítimas desse fenômeno.

Mais do que um acontecimento pontual, ele se caracteriza pela ação sistemática em que um ou mais indivíduos agridem física ou verbalmente, perseguem e humilham outra pessoa. Essa ação sistemática acontece entre sujeitos que possuem diferença de força ou poder nas relações que estabelecem, na qual a vítima, sempre mais fragilizada, não possui recursos para o enfrentamento da situação e, na grande maioria das vezes, não recorre a ajuda de um adulto ou uma autoridade por medo ou receio de ser mais excluída do grupo ao qual pertence.

A Tríade do Bullying
Há uma tríade constituída na prática do bullying, formada pelo agressor ou agressores, vítima e plateia. A figura do agressor busca afirmar-se ante os demais como referencial de força e valentia para ser temido e, dessa forma, respeitado. Muitas vezes, o agressor reproduz por meio da violência contra o outro a agressão que viveu ou vivencia em outra realidade. A plateia dá sustentação para a prática do bullying ao não interditar a ação violenta por medo ou ao incentivá-la pela identificação e validação da agressão realizada. A vítima geralmente carrega traços que promovem a projeção dos agressores, daquilo que não aceitam em si. A diferença passa a ser a marca sobre a qual a violência incidirá, afetando duplamente a pessoa agredida, pois além do ataque físico, as ofensas proferidas afetam diretamente sua existência enquanto sujeito, reforçando preconceitos e exclusão. Por isso, características físicas, orientação sexual, questões raciais ou socioeconômicas são constantes focos de ataque por parte dos agressores.

Cyberbullying
Toda essa estrutura e lógica que caracterizam o bullying ganham outra dimensão quando recaem sobre o mundo virtual e dão origem ao que chamamos de cyberbullying, ou seja, os processos de agressão, perseguição, humilhação e intimidação que ocorrem no espaço físico das escolas perdem a combatividade do corpo a corpo, mas ganham uma abrangência exponencialmente maior nas ações que se utilizam das redes sociais, aplicativos de mensagens e diferentes plataformas que os jovens utilizam para os ataques contra outra pessoa.

A tríade apresentada anteriormente se mantém com a figura do agressor, vítima e plateia, porém, a escala dos ataques ganha contornos inimagináveis frente às situações presenciais de bullying. O agressor passa a contar com uma multiplicidade de ferramentas para edição de fotos, vídeos e áudios na produção de conteúdos visando atacar diretamente a sua vítima. O anonimato é outro fator que fortalece a figura do agressor, que pode criar perfis falsos para dificultar ou inviabilizar sua identificação, ainda que a rastreabilidade da produção de conteúdos seja uma realidade. A possibilidade da difusão dos ataques é quase ilimitada, pois uma vez que um conteúdo esteja postado nas redes é praticamente impossível garantir que ele será totalmente removido do universo virtual. Em relação à plateia, ela se amplifica para além dos círculos de convivência da vítima, pois a circulação do conteúdo produzido pode alcançar, em tese, toda a rede. A exposição gerada, que em si já é muito grave, ainda terá a possibilidade de contar com comentários agressivos, cancelamentos e outras consequências nefastas presentes no mundo virtual.

Sobre a vítima, vale nos debruçarmos um pouco mais. Aqui não cabe diferenciação entre as pessoas que sofrem bullying ou o cyberbullying. As consequências para quem passa por esse tipo de violência são bastante graves, afetam diretamente a saúde mental dos indivíduos e se manifestam de várias formas, como isolamento social, queda no rendimento e abandono escolar, automutilação, depressão e até mesmo o suicídio. O sofrimento se coloca como um imperativo na vida dessas pessoas e a ausência de um suporte ou ajuda efetiva sempre agrava cada situação, que precisa ser entendida na singularidade de cada caso, a partir da história e realidade de cada sujeito.

Um cenário preocupante
O número de crianças e adolescentes que sofrem algum tipo de violência no ambiente escolar varia conforme as fontes, mas sempre é assustador. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos, o Brasil perde apenas para a Índia no que se refere aos casos de bullying ou cyberbullying. Em pesquisa realizada pelo DataSenado no ano passado, cerca de 7 milhões de crianças relatam ter sofrido violência na escola nos doze meses que antecederam a pesquisa, o que equivale a 11% dos estudantes regularmente matriculados no país. Temos, portanto, uma realidade muito delicada para lidar.

Para combater o bullying e o cyberbullying, o governo federal criou, no início de 2024, a lei 14.811, que criminaliza e estabelece punição, que podem chegar até 4 anos de prisão, caso a conduta não constitua crime mais grave. A criação desta lei, ao mesmo tempo que traz à tona o problema do bullying e do cyberbullying e se torna um importante instrumento no combate a esse tipo de violência, evidencia que a nossa atuação como sociedade foi falha, pois a lei surge para colocar uma barreira concreta (pelo menos em tese) naquilo que não conseguimos resolver por outros caminhos.

Atenção e Escuta para os Adolescentes
Isso significa que devemos mais do que nunca centrar forças e atuar onde até agora falhamos, pois a punição estabelecida pela lei virá para o fato consumado e nossas ações devem correr contra o relógio para que mais situações não aconteçam. Portanto, o trabalho deve ocorrer preventivamente. Se não há fórmulas para o enfrentamento ao bullying e cyberbullying, há caminhos que podem se demonstrar potentes para isso.

Estabelecer um olhar cuidadoso para a adolescência é um deles. Primeiramente, devemos considerar que a geração que hoje discute e pensa ações para a adolescência viveu, em sua adolescência, uma realidade diferente. Nos anos 90, Eric Hobsbawm escreveu que os jovens daquele tempo não se reconheciam mais na juventude de seus avós e isso foi pensado há mais de 30 anos. Outro pensador importante, Zygmunt Baumann, em sua obra “Modernidade Líquida” afirmou que as mudanças na era da globalização foram tão rápidas que os pilares que serviam como referências à sociedade como a família, estado, escola e religião não deram conta de se atualizar no mesmo ritmo das transformações. Nossos jovens nos pedem respostas que não estamos totalmente preparados para dar (se é que em algum momento isso foi possível!). É preciso, também, estabelecer um diálogo que ofereça uma escuta cuidadosa aos jovens, repensando as respostas que muitas vezes trazemos prontas na ponta de nossa língua.

Será por meio da troca legítima com os jovens que encontraremos os melhores caminhos para os problemas aqui colocados. Informar e mostrar os caminhos de apoio e ajuda para esse enfrentamento é condição para qualquer trabalho. Nesse sentido, a escola e família, cada uma a partir de sua própria realidade, devem ser protagonistas na aproximação e no combate a esse e outros tipos de violência praticadas contra crianças e adolescentes.

Conclusão
O trabalho contra o bullying e o cyberbullying deve acontecer com toda a tríade apresentada neste artigo. Não é só a vítima que precisa de ajuda. Precisamos cuidar e acolher quem agride para entender qual é o sofrimento que funciona como gatilho para sua ação e oferecer o apoio e o afeto que esses jovens precisam para avançar em suas dificuldades. Isso não exclui sanções, possíveis punições, ações reparatórias ou outras formas de ajudá-los a enfrentar as consequências de seus atos, mas precisamos continuar acreditando, sempre, que outro caminho é possível para eles.

Para a plateia, precisamos oferecer a informação, o debate e a elaboração de sua condição. Tivemos, e ainda temos, exemplos sangrentos das consequências da anulação da condição de sujeito, quando o indivíduo se encontra submerso na massa, na horda, aderindo às demandas de líderes, que se colocam na condição de pais supremos. Para as vítimas, o acolhimento, o apoio, a segurança, a escuta, o afeto e tudo mais que possa auxiliar na cicatrização das feridas constituídas são fundamentais, pois haverá cicatrizes.

Leandro Lamano Ferreira

Leandro Lamano Ferreira

Historiador, pedagogo e psicanalista

Instagram: @lelamano
LinkedIn: Leandro Lamano Ferreira

Referências
SCAVACINI, Karen e FERREIRA, Ferndano L. Bullying e Cyberbullying. In.: Pediatria e saúde mental: implicações frente às mudanças do século XXI/ Coordenação Denise de Sousa Feliciano. 1. Ed. – Rio de Janeiro: Atheneu,2024.
LONGO, Monique Marques. A projeção do ódio ao diferente na escola: bullying numa leitura freudiana. In.: Cad. Psicanál. (CPRJ). Rio de Janeiro, v. 44 n. 47, p. 207-219, jul./dez. 2022.
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. In.: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
BAUMANN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janiero: Zahar, 2001.
Sites
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Vídeos
Senta que lá vem história. Bullying e cyberbullying: como lidar com a violência nas escolas? YouTube, 09/07/2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6Z0vuWFOwfE. Acesso em: 14/09/2024.

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