Família e cultura no contexto terapêutico. A tecitura de complexas tramas, entre dores e amores.
Família e cultura no contexto terapêutico. A tecitura de complexas tramas, entre dores e amores.
É de família! Esta é uma afirmação comum em diversas situações, sobretudo em encontros terapêuticos e em contextos de saúde e educação. Costumes, repertórios linguísticos, comportamentos, entre outras manifestações que possam carregar consigo expressões comuns à família daquela pessoa. Estar diante dessa frase é ter a oportunidade de se aproximar de um complexo universo que constitui e habita quem está falando, além de convocar quem escuta a se posicionar de forma estratégica, humana e habilidosa.
Assuntos delicados podem ficar protegidos e são de difícil acesso. Quando saber, então que a frase “é de família” pode representar uma janela ou um tapume para determinados conteúdos? Em 2022 apresentei em minha dissertação de mestrado este questionamento, tendo a oportunidade de ampliar o olhar e convidar o leitor a pensar sobre os possíveis caminhos que levam aos conteúdos das pessoas que são atendidas por profissionais da saúde, bem como em contexto psicoterapêutico.
São tantas e incontáveis os fios e as tramas que constituem a tecitura familiar que habita cada pessoa. De certo que há variações, influenciadas pela época e o contexto em que se vive, do mesmo modo as expressões culturais existentes. Os conteúdos presentes nesta trama familiar podem ocupar certa significância e a relevância a eles atribuída também são uma importante pista ao ouvinte. É como pensar em uma via com sinalizações verticais, horizontais e semafóricas. Além disso, perceber tanto a movimentação, quanto a paisagem ao redor.
O encontro terapêutico flui como uma autoestrada, com múltiplos acontecimentos. Determinadas sinalizações podem surgir impedindo ou facilitando a continuidade percurso/conversa/acesso. Amores, dores, histórias e experiências são alguns dos fios que compõem a tecitura familiar. Dentre as ferramentas mais importantes de manejo clínico para lidar com estes conteúdos, está a arte de escutar. Neste sentido, o texto escutatória de Rubem Alves (2004) oferece importante provocação em relação as dificuldades de ouvir e silenciar.
Disponibilizar-se a estar (com) e ouvir o outro em contexto terapêutico, é entregar o tempo, a atenção e principalmente demonstrar um interesse genuíno através de uma curiosidade mobilizada pela arte do não saber. Neste sentido é preciso retornar Anderson e Goolishian (1998) quando propuseram que o “não saber” terapêutico, requer que o entendimento, as interpretações e explicações não sejam limitados por experiências anteriores nem conhecimentos ou verdades formadas teoricamente. Esta é uma tarefa desafiadora, ao considerarmos os modelos ainda atuantes na formação dos profissionais que trabalham escutando histórias, acolhendo pessoas.
A herança do modelo positivista de ensino e compreensão de mundo, em que a ideia do universo como lugar estável, que pode ser estudado de forma objetiva, seguindo-se leis rígidas, colocando o profissional como observador à parte do fenômeno, estudando e intervindo no objeto de estudo de forma setorizada, através das especialidades parece não ser mais suficiente como método para lidar com as humanidades.
As dores e os amores experenciados durante a vida, poderão – em suas intensidades – provocar expressões tanto no corpo físico quanto no emocional. A cisão entre mente e corpo, como um olhar compartimentado poderá amputar importantes elementos que constituem a expressão do fenômeno naquela pessoa. Não se trata de privilegiar isso ou aquilo, mas desenvolver a habilidade de integrar isso e àquilo. Neste sentido os pressupostos do pensamento sistêmico, como a complexidade instabilidade e intersubjetividade apresentam-se como importante alternativa.
Silenciar para ouvir, está a serviço não só de uma escuta empática ou escuta ativa, mas também para buscar acompanhar a pessoa em seu mundo. Neste encontro intersubjetivo não parece caber métricas em que as dores ou amores são quantificados, mas sim sentidos e compreendidos nos significados construídos pela pessoa que está em atendimento.
Teoria e técnica são ferramentas de trabalho que, embora fundamentais, não são obstantes. O acesso é, por muitas vezes, construído através do encontro intersubjetivo bem como pelos não ditos e pela comunicação não verbal.
É preciso considerar que esta mudança paradigmática pode suscitar certa angústia, considerando a possível sensação de vulnerabilidade do profissional, ao colocar-se na posição de não saber.
Neste sentido, desarmar-se das perigosas posturas do “já sei” ou até mesmo “preciso dar uma resposta logo” e apropriar-se do tempo como uma ferramenta de elaboração e Co construção, torna-se atitude central para construir o encontro terapêutico.
Há, decerto, a possibilidade de significados distintos, entre profissional e pessoa atendida, para fenômenos semelhantes, como por exemplo o conceito de família:
Família pode ser vista como uma das instituições mais antigas estabelecidas na sociedade e está presente nas mais diversas manifestações culturais, seu conceito possui múltiplas variáveis e atribuições. Cada família terá sua dinâmica influenciada por questões sociais, culturais, religiosas, econômicas, entre outros fatores. Além disso, próprio conceito de família como um organismo, propõe sua evolução e adequação ao decorrer dos tempos.
As mudanças que ocorrem na estrutura e configuração familiar estão diretamente relacionadas com a evolução da sociedade, do mesmo modo que as mudanças acontecidas na sociedade contribuirão para a alteração da dinâmica familiar. É recursivo. O contexto social não constitui fim, mas sim meio para viabilizar possíveis respostas ou elementos necessários para compreender as necessidades familiares, que podem surgir em decorrência de múltiplas negligências experienciadas tanto na esfera social, quanto econômica e afetiva.
Aspectos culturais apresentam-se como questões necessárias tanto para a formação dos profissionais, quanto a determinação de suas atuações.
O conceito apresentado por McGoldrick e Ashton (2016) de que a cultura padroniza os pensamentos, sentimentos e comportamento tanto de formas obvias quanto sutis, contribuindo para que a identidade cultural tenha profundo impacto na noção de bem-estar, saúde física, espiritual e mental. Neste caminho, Müller, Lima e Ortega (2023) entendem que cultura implica um padrão integrado de comportamento humano incluindo pensamentos, comunicações, ações, costumes, crenças, valores e instituições de um grupo racial, étnico, religioso ou social.
Esta noção aliada à escuta terapêutica pode conferir a habilidade para reconhecer e discutir as estruturas, regras e demais padrões individuais e familiares que se apresentam durante o atendimento, validando o repertório cultural apresentado.
Lopes e Sathler (2022) destacam a importância da interculturalidade para acesso e atendimento da população indígena, buscando reconhecer a transversalidade entre os saberes ocidentais e os saberes tradicionais indígenas que, apesar de distintos, se entrecortam e se entre penetram nas estratégias de cuidados interculturais.
Decerto que questões pré-concebidas ou até mesmo discriminatórias podem ser transmitidas na formação dos profissionais, tendo ressonância em sua prática laboral.
Ainda hoje pode-se perceber falas que atribuem a questões étnicas ou sociais a “falta” de cultura questionando assim determinados fenômenos sociais ou expressões comportamentais. Quantificá-la implica em assumir uma referência padrão em que pudesse ser comparada.
A Atenção Primária à Saúde (APS) apresenta entre seus atributos derivados, a competência cultural. Este termo é discutido na literatura em saúde nacional e internacional. Damasceno e Silva (2018) apontam como dimensões da competência cultural três pontos importantes, sendo:
melhorar a sensibilidade dos profissionais de saúde às crenças culturais, práticas, expectativas e origens de seus pacientes e suas comunidades; Melhorar o acesso aos cuidados de saúde, eliminando as barreiras estruturais aos cuidados de saúde de qualidade para as minorias e Reduzir as barreiras organizacionais, como o pequeno número de profissionais de saúde, administradores e elaboradores de políticas.
Sobre as propostas na formação profissional, Goveia, Silva e Pessoa (2019) afirmam que para o desenvolver a competência cultural, a literatura sugere utilizar múltiplos cenários, contextos e estratégias pedagógicas perpassando longitudinalmente e integrativamente o currículo, não devendo ser apenas uma disciplina, um estágio ou atividades isoladas, mas, também, uma postura institucional.
Pensando as competências culturais e as habilidades necessárias para o fazer clínico, a inclusão do método CHA (acróstico) pode ser utilizada com o compartilhamento do conhecimento entre equipe, paciente e família, produzindo ações recursivas, integrativas e não excludentes dos múltiplos saberes. A habilidade se apresenta através de escuta ativa, habilidades comunicacionais verbais e não verbais bem como manejo clínico. Por fim, as atitudes, e os valores incorporados pelos profissionais expressos através de forma respeitosa, empática, assumindo uma postura de não-saber, promovendo o vínculo terapêutico de forma eficaz (SAMPAIO, 2022.).
Por fim, reunir essas ferramentas e dispor de condições para utilizá-las pode conferir acesso ao universo complexo tanto da pessoa atendida, quanto das questões familiares e culturais que a compõem. Alguns tapumes podem conter acessos que, com habilidade e empatia, poderão ser abertos, permitindo aproximar-se de questões humanas tão delicadas, como as dores e amores que configuram fenômeno constituinte, bem como experiências relacionais.
David Sampaio
Mestre em psicologia clínica
Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP 2022, Núcleo Família e Comunidade. Especialista em Psicologia da Infância e Adolescência pela UNIFESP, 2014. Colaborador voluntário e preceptoria UNIFESP 2014 à 2018. Formado em Psicologia pela Unisa, 2007. Psicólogo Clínico em consultório particular. Participação nos livros “Família Cultura e Mitos” 2021 Ed. CRV e ” Família, novos retratos em novas molduras” 2024 Ed. CRV.
Email: ddsampaio@yahoo.com.br
Instagram: @psicologodavidsampaio / ddsampaio@yahoo.com.br
Alves, R. (2004). Escutatória. In R. Alves, O amor que ascende a lua (pp. 65-71). Campinas, SP: Papirus.
Anderson, H.; Goolishian, H. (1998) O cliente é o especialista: a abordagem terapêutica do não-saber. In McNamee, S.; Gergen, K. (Orgs.) Terapia como construção social. Porto Alegre RGS: Artes Médicas.
Damasceno, R. F., & da Silva, P. L. N. (2018). Competência cultural na atenção primária: algumas considerações. JMPHC | Journal of Management & Primary Health Care | ISSN 2179-6750, 9. https://doi.org/10.14295/jmphc.v9i0.435
Gouveia, E. A. H., Silva, R. de O., & Pessoa, B. H. S.. (2019). Competência Cultural: uma Resposta Necessária para Superar as Barreiras de Acesso à Saúde para Populações Minorizadas. Revista Brasileira De Educação Médica, 43(1), 82–90. https://doi.org/10.1590/1981-5271v43suplemento1-20190066
Lopes, D. C., & Sathler, C. N.. (2022). O Papel da(o) Psicóloga(o) na Saúde Indígena. Psicologia: Ciência E Profissão, 42, e240841. https://doi.org/10.1590/1982-3703003e240841
McGoldrick, M., & Ashton, D. (2016). Cultura: Um desafio aos conceitos de normalidade (S. M. M. Rosa, Trad.). In. F. Walsh (Org.), Processos normativos da família: Diversidade e complexidade (4. ed., pp. 249-272). Artmed.
Müller, M. R., Lima, R. C., & Ortega, F. (2023). Repensando a competência cultural nas práticas de saúde no Brasil: por um cuidado culturalmente sensível. Saúde e Sociedade, 32, e210731pt.
Sampaio, D. (2022). É de família! janela ou tapume para o terapeuta e profissionais da saúde?: estudo sobre as lealdades, mitos familiares e o contrato psicológico familiar.