Arranhe o adulto e aparecerá a criança
Arranhe o adulto e aparecerá a criança
Ao pensarmos nesse aforisma que Ferenczi nos deixou, dentre suas inúmeras contribuições, podemos pensar diretamente na nossa postura de analistas e no consequente manejo clínico que devemos adotar.
Como nos lembra Kupermann: “A marca da delicadeza proposta por Ferenczi à clínica psicanalítica, reside assim, no alerta para que o abandono traumático sofrido pelo analisando não se reproduza na experiência transferencial.”
Precisamos estar muito atentos para que não sejamos insensíveis à história de sofrimento do sujeito que escolheu ser acompanhado por nós, sendo de fundamental importância, tomarmos um contato constante com aspectos contra transferenciais, pensarmos em como somos afetados e em função disso, como afetaremos nossos analisandos.
Seguindo em Kupermann: “Diante de um analista insensível, só restará ao analisando o descrédito em relação à sua dor, configurando, por meio de uma espécie de anestesia mortífera, o derradeiro abandono de si.
Sabemos que a finalidade principal de uma análise, não é a compreensão que o sujeito possa obter sobre si. Cabe ao processo analítico, a nomeação e a historicização do sofrimento psíquico, não só pela racionalização, mas sim principalmente por via das experiências afetivas de acolhimento e tato. O analista poderá nesta perspectiva, cuidar empaticamente de seu analisando, promovendo através desse vínculo transferencial, que o analisando, venha a obter toda uma mudança de relações consigo mesmo e com os objetos. Sendo assim, o preponderante objetivo analítico, será o de produzir efeitos afetivos.
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Quem sabe de si é o próprio sujeito, nesse enquadre, temos um analista cada vez mais interpretando menos, fazendo pontuações que auxiliem o analisando a prosseguir, baseando-nos na ética do cuidado que Ferenczi propõe. Ao estarmos com um paciente muito fragmentado, precisamos interferir no sentido contrário de promover angústia. Frente a um estado de desamparo, de solidão, ao percebermos que o sujeito precisa de acolhimento, não podemos gerar efeitos iatrogênicos que os descompensariam ainda mais.
No artigo Confusão de Língua Entre os Adultos e a Criança, Ferenczi nos falará de pacientes que os acusava de ser frio, duro, cruel, egoísta, presunçoso e gritavam: “Depressa, ajude-me, não me deixe morrer nesta angústia.” Isso nos remete a tomarmos contato, a partir do nosso manejo clínico, com aspectos da pulsão de morte dos nossos pacientes, que os levam a sentir-se em desamparo, em angústia de aniquilamento, que são sensações muito arcaicas de nosso funcionamento psíquico.
Ainda no mesmo artigo, ele prossegue nos dizendo: “Em vez de contradizer o analista, de acusa-lo de fracasso ou de cometer erros, os pacientes identificam-se com ele. Somente em momentos excepcionais de excitação histeróide – ou seja, num estado quase inconsciente- é que os doentes podem reunir suficiente coragem para protestar. […] portanto, devemos não só aprender a adivinhar, a partir das associações dos doentes, as coisas desagradáveis do passado, mas também nos obriga muito mais a adivinhar as críticas recalcadas ou reprimidas que nos são endereçadas.
O autor nos mostra que na infância, além do Édipo, há na relação dos adultos com as crianças, uma tendência incestuosa desses, uma linguagem da paixão, inconsciente para eles, que se manifesta através de conteúdos sexuais, com ameaças e punições. Adultos mandam, crianças obedecem… as crianças, em busca de ternura e aprovação, em sua quase totalidade, não conseguem entender essa linguagem da paixão adulta e acabam tendo uma vivência violenta e em geral terrorífica, principalmente quando ao manifestá-las os adultos as desmentem.
E como se dará esse desmentido? Ele ocorrerá, quando o adulto não dá credibilidade a algo que tenha acontecido com a criança, algo da qual ela se queixa pedindo ajuda e essa confirmação não vem. Ao contrário, é quando o adulto quer “convencer” a criança em sofrimento, buscando entender e nomear o que se passou com ela, de que nada se deu, nada aconteceu. É esse desmentido, que tornará o traumatismo patogênico, pois a criança, além de ter sofrido o trauma, sofre da desautorização de um adulto que deveria protegê-la, um adulto em quem ela deveria confiar. É nessa situação que ela irá encontrar-se totalmente desamparada, sem ter mais a quem recorrer.
É o adulto, que poderia dar-lhe o entendimento da experiência vivida, mas ao desmenti-la, o que poderia reinscrever-se psiquicamente, de modo diferente do que foi o trauma, confirmará o que aconteceu, com o agravante de colocar em dúvida as próprias percepções daquele que a vivenciou. Esse comportamento adulto, desmentindo, desautorizando todo um relato da experiência traumática em si, proporcionará uma ação decisiva no traumatismo. Como nos dirá Felicia Knobloch: “O adulto, aqui, nega à criança o direito de reconhecer como verdadeiros os sentimentos por ela vivenciados e tenta, ao mesmo tempo, forjar e impor uma outra história.” Como analistas podemos também desmentir nosso analisando, apontando-lhe fantasias persecutórias, responsabilizando-o pela vivência, sem considerar que um evento externo poderá ser o causador dessa percepção. Em nossa relação com o mundo, sofremos preconceitos, ataques, vários tipos de violências, desautorizações que visam nos silenciar. Na tentativa de proteger todo um poder patriarcal, os grupos considerados minorias políticas como gays, negros mulheres, transgêneros, etc… poderão ver-se submetidos a essa condição.
Só uma psicanálise humanizante e redentora, que tenha como objetivo a escuta em todas as suas manifestações, considerando graus de igualdade, buscando dar voz a quem quer falar do seu sofrimento, poderá libertar o sujeito desses processos de subalternização, sem sentir-se excluído. Para isso, nós analistas pelo suposto saber que nos é instituído transferencialmente, devemos deixá-los falar, exercitando empaticamente nossa postura, na tentativa de podermos sair de pensamentos próprios e escutá-los na forma como eles se apresentam, pois nem sempre nossas vivências são similares e equivalentes.
Tanto humana quanto profissionalmente, temos visões de mundo diferentes, com toda uma multiplicidade discursiva. Cabe perguntar-nos: há neutralidade? Possivelmente não, portanto, devemos trabalhar continuamente em nós, o que poderá nos tirar desse lugar de reprodução de traumatismos. Somos atravessados por uma postura ética que deve ser questionada muitas e muitas vezes, repensando nossos marcadores sociais, repensando nosso posicionamento político sempre presente.
Precisamos aprender afetivamente, onde estamos deixando de ouvir.
Jô Gondar no artigo, O Analista como testemunha, irá nos dizer: “[…] dar testemunho da própria história e do próprio sofrimento, endereçando-os a alguém, seria uma forma de elaboração das vivências traumáticas… a Psicanálise não só produziu teorias consistentes sobre o trauma como também um dispositivo clínico que é, em si mesmo, uma situação testemunhal, reconhecendo que a clínica do traumático liga com algo mais do que uma narrativa e sua escuta… testemunhar, não se trata simplesmente de narra o que aconteceu, mas fazê-lo ao mesmo tempo em que se admite que o que aconteceu, não faz parte do narrável. Sem o reconhecimento desse paradoxo, o efeito terapêutico não se dá ou ocorre de maneira enfraquecida… o psicanalista que ouve essa narrativa paradoxal, não seria ele também uma testemunha?”
Em toda sua obra, tanto teórica, quanto técnica, Ferenczi vai passo a passo nos mostrando, como é de fundamental importância, estarmos muito atentos a todas as sensações que os pacientes nos causam, para nos defrontarmos com as resistências, não só do analisando, mas com as nossas próprias. Por isso, ele nos pergunta até onde chegou a análise do analista? Exigência essa imprescindível de nossa formação continuada, pois só conseguiremos ouvir nossos pacientes, se tivermos ouvido a nós mesmos em nossas inquietações, em perguntas que formulamos sobre nosso mundo interno, sobre nossas relações objetais, nossas fantasias, nossos medos e limitações, para só assim abandonarmos a postura que Ferenczi nomeava de hipocrisia profissional, onde o analista se coloca numa posição de suposto saber, acreditando que sabe sobre o outro, o que nem mesmo sabe sobre si.
Em seu Diário Clínico, Ferenczi, 1932 nos dirá: “O que o doente espera do analista é o crédito concedido à realidade do evento”.
Ferenczi considera o trauma, com responsável pela auto clivagem narcísica/autotomia, onde ocorre todo um despedaçamento, com mutilações e fragmentações. A autotomia é um conceito da Biologia, onde algumas espécies para se protegerem de um perigo eminente, livram-se de um pedaço do próprio corpo, abandonando, um pedaço de si para obterem salvação.
Num primeiro momento, num movimento defensivo, esses sujeitos podem apresentar uma reação aloplástica, tentando mudar o ambiente e o contato com o adulto agressor, acreditando que esse choque não mais acontecerá. Quando percebem a impossibilidade dessa mudança ocorrer, podem surgir reações autoplásticas, utilizando defesas como a clivagem, a fragmentação, a atomização de si e a autotomia (capacidade que algumas espécies possuem de liberar partes de seu corpo em automutilação). Na linguagem de Winnicott o sujeito utiliza-se de um falso self para sofrer, enquanto o verdadeiro self ficará de algum modo, protegido. De um lado a morte e do outro a vida, dor e riso, mesclando desespero e alento sempre em busca de regenerar o que restou.
No Diário Clínico de 1932, Ferenczi refere-se à insensibilidade do analista que podemos considerar como uma defesa nossa, que quando utilizada, poderá nos impedir de sermos afetados e consequentemente deixamos de afetar nossos analisandos no encontro clínico.
Em Elasticidade da Técnica Psicanalítica, Ferenczi retoma uma formulação importantíssima de Freud, até então não devidamente valorizada: a de que uma interpretação cometida sem tato é não apenas inócua, mas efetivamente patogênica. Segundo Kupermann:
“Ferenczi remete o tato, cujo sentido Freud não chegou a aprofundar, à faculdade da empatia (Einfuhlung), até então explorada apenas no terreno da investigação estética, e cuja tradução literal seria “sentir dentro” […] é a compreensão do campo transferencial como um plano de compartilhamento afetivo que, por meio do encontro lúdico, favorece a produção de sentidos para as experiências de cada um dos parceiros da análise. Se o analista se dispuser a ser usado como um “joão-teimoso”, e se oferecer como suporte das mais intensas manifestações afetivas previstas pela transferência, será recompensado com o ultrapassamento de muitas das resistências objetivas, impostas pelo tratamento-padrão. Assim, a inovação de Ferenczi segundo a sua própria avaliação, foi resgatar da regra fundamental, a dimensão de liberdade.”
Para efeito terapêutico, a psicanálise, privilegia a singularidade de cada analisando e a dignidade de seu sofrimento. A interpretação excessiva, privilegiando o inteligível e não as vivências afetivas, pode inibir as manifestações regressivas. Coube a Ferenczi formular a necessidade do acolhimento do infantil em análise. Em Análises de crianças com adultos, texto de 1931, ele nos mostra que em vez de falar DA criança que habita o analisando via interpretação, seria preciso falar COM a criança que aparece em cada sujeito, dando voz ao aforisma com o qual me propus trabalhar neste artigo.
“NAS HORAS GRAVES, OS OLHOS FICAM CEGOS;
É PRECISO, ENTÃO, ENXERGAR COM O CORAÇÃO.”
Antoine de Saint-Exupéry

Heloísa Antiori
Psicóloga