Crise de emergência espiritual ou bipolaridade?
Crise de emergência espiritual ou bipolaridade? Um convite para repensar a loucura sob a perspectiva da Psicologia Transpessoal
A linha tênue entre uma crise de emergência espiritual e o transtorno bipolar levanta questões fundamentais sobre como entendemos a mente humana e suas experiências mais profundas. Sob a perspectiva da Psicologia Transpessoal, que reconhece a natureza espiritual do ser humano como um aspecto intrínseco de sua existência, esse dilema ganha novas camadas de significado e complexidade.
Oficializada em 1968, a Psicologia Transpessoal traz o reconhecimento de que a natureza humana vai além do pessoal e integra os aspectos bio-psico-sócio-espirituais do ser humano. A inclusão da espiritualidade, vista como uma pulsão à transcendência, é considerada um processo natural e inerente a todos os seres humanos. É o que nos faz buscar sentido para nossa existência. Esta dimensão transpessoal transcende a dualidade e traz a experiência da unidade, possibilitando a expressão de um ser mais íntegro e pleno.
A crise de emergência espiritual, termo cunhado pelo psiquiatra tcheco Stanislav Grof um dos cofundadores da Psicologia Transpessoal, refere-se a um estado em que uma pessoa enfrenta uma experiência intensa e desestabilizante, mas que também traz um potencial de profunda transformação. Esses episódios podem incluir sentimentos de unidade, êxtase, ou a sensação de adquirir um conhecimento transcendente, acompanhados por mudanças de percepção e até delírios de natureza espiritual. Embora essas crises possam ser desorientadoras e causar sofrimento, elas também são vistas como oportunidades para uma elevação a novos níveis de consciência, desde que sejam compreendidas e integradas adequadamente.
De acordo com o CID-10, o Transtorno Afetivo Bipolar é caracterizado por episódios repetidos (pelo menos dois) nos quais o humor e os níveis de atividade do paciente ficam significativamente perturbados. Esta alteração consiste, em algumas ocasiões, de uma elevação do humor, aumento de energia e atividade (mania ou hipomania) e, em outras, de rebaixamento do humor e diminuição de energia e atividade (depressão). Nos quadros de transtorno bipolar tipo 1, é comum a pessoa apresentar delírios místicos, ter experiências espirituais e trazer temas relacionados à espiritualidade.
O espectro das variações do humor é extremamente extenso e vai desde quadros esquizoafetivos até as fronteiras da “normalidade”. A medicina continua buscando um melhor conhecimento sobre a patofisiologia completa, os mecanismos estruturais e funcionais (genéticos, biomoleculares, celulares, químicos) envolvidos nos quadros de transtorno bipolar.
Ao propor uma visão integral dos transtornos mentais, é fundamental investigar não somente os determinantes psicopatológicos, sejam eles biológicos, psicológicos, genéticos e culturais, mas também investigar os aspectos para além do pessoal, sejam eles transpessoais, sistêmicos, energéticos, arquetípicos, ancestrais e espirituais.
Identificar quando uma pessoa está passando por uma crise espiritual que pode catalisar em transformação e crescimento e quando está enfrentando um transtorno mental que exige intervenções médicas tem sido um enorme desafio tanto para profissionais como para as pessoas enfrentando essas experiências. Investigar essas experiências, assim como os diferentes estados de consciência que elas acarretam, tem sido o objeto de estudo da Psicologia Transpessoal. Ao invés de rotular automaticamente as experiências espirituais intensas como patológicas, a Psicologia Transpessoal propõe uma abordagem mais integrada com o reconhecimento de que a experiência humana é vasta e multifacetada e demanda uma revisão completa da cartografia da consciência.
Ainda existe muita incompreensão em relação aos fenômenos humanos que a mente racional não consegue explicar. Contudo, as experiências espirituais e religiosas estão presentes na história da humanidade e vêm recebendo diferentes nomes, como: Experiência Transcendental, Êxtase Místico, Samadhi, Nirvana, Estado de Buda, Iluminação, Estado de Graça. Na psicologia, também existem diferentes denominações para essas experiências: Consciência Mística – William James, Experiência Transpessoal – Carl Jung, Experiência Culminante – Abraham Maslow, Experiência Cósmica – Pierre Weil.
Recentemente, até mesmo os fenômenos paranormais têm ganhado mais espaço para serem investigados com a Psicologia Anomalística, que estuda as experiências anômalas, tais como: fora-do-corpo, quase-morte, sonhos lúcidos, percepção extra-sensorial (telepatia, clarividência, precognição), extra motoras (como curas à distância) e místicas ou espirituais.
Passar por experiências espirituais e/ou anômalas pode ser extremamente desestruturante, principalmente se a pessoa não tiver um contexto para integrar sua experiência. Grof identificou que as crises psicoespirituais trazem um potencial de transformação profunda se forem acolhidas adequadamente. Ele cunhou dois termos para diferenciar essas experiências: Emergência Espiritual (Spiritual Emergency), que sugere uma oportunidade de ascensão a um novo nível de consciência, emergência no sentido de “elevação”, e Crise de Emergência Espiritual (Spiritual Emergency), sugerindo uma crise, emergência no sentido de “urgência”.
Durante mais de 60 anos de trabalho e pesquisa, Grof verificou diferentes padrões experienciais e graus de insanidade nas experiências transpessoais, as quais requerem tratamentos diferenciados, sendo o auxílio relativo à natureza, profundidade e intensidade do processo. Grof insiste que o tratamento deve levar em consideração cada caso individualmente, podendo limitar-se a um apoio específico à pessoa em crise ou podendo envolver parentes, amigos ou grupos de apoio. Deve ser flexível e criativo, respeitando a natureza individual da crise e utilizando todos os recursos disponíveis.
Grof identificou vários tipos de crise de emergência espiritual. Alguns sintomas mais comuns incluem: sentimentos de amor/unidade/êxtase, sensação de conhecimento recém-adquirido, alteração de percepção, delírios com temas espirituais ou místicos, insônia, instabilidade de humor, entre outros.
Embora de forma bastante simplificada, graças ao trabalho de David Lukoff e outros autores, a categoria diagnóstica de Problema Religioso ou Espiritual foi inserida no DSM-IV-TRTM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) em 1994. Lukoff passou por uma crise de emergência espiritual aos 23 anos e posteriormente se tornou psicólogo especializado em tratamento de pacientes psicóticos e referência nos estudos sobre saúde mental e espiritualidade nos Estados Unidos.
Apesar de ser pouco difundida, essa categoria pode ser usada quando o foco de atenção clínico apresenta um problema religioso ou espiritual. Exemplos incluem: experiências angustiantes que envolvem a perda ou questionamento da fé, problemas associados com a conversão a uma nova fé, ou o questionamento de valores espirituais que podem não estar, necessariamente, relacionados com uma igreja ou religião institucionalizada.
O convite para repensar a loucura parte do princípio de que a espiritualidade desempenha um papel crucial no desenvolvimento e na cura da mente. É um apelo para que a saúde mental não apenas trate os sintomas, mas também acolha a jornada espiritual de cada indivíduo, oferecendo um caminho de integração e crescimento. Através dessa perspectiva, o conceito de “loucura” pode ser ressignificado, abrindo espaço para uma compreensão mais ampla e compassiva das crises humanas, onde a espiritualidade e a ciência caminham lado a lado na busca por uma existência mais plena e significativa.
Esta abordagem vem sendo desenvolvida e aperfeiçoada desde 2009 inicialmente com a criação da rede social Alma Bipolar cujo objetivo era disponibilizar informações para ajudar pessoas diagnosticadas com transtorno bipolar a trazerem um sentido mais amplo para suas experiências e posteriormente com o lançamento do Movimento Repensando a Loucura, que foi lançado com o apoio do ProSER – Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade do Instituto de Psiquiatria da USP em maio de 2017.
O Repensando a Loucura foi inspirado na campanha internacional #EmergingProud, idealizada pela inglesa Katie Mottram, que também passou por uma crise de emergência espiritual, com a proposta de criar espaços seguros para que as pessoas possam falar sobre suas experiências espirituais e/ou anômalas mais abertamente e expandir a percepção do que é “normal” em todo o mundo.
Além de realizar eventos anuais, oportunizando espaços de diálogos entre psiquiatras, psicólogos e os “experienciadores”, as pessoas que passam por essas experiências e que são tão pouco ouvidas até hoje, o Repensando a Loucura vem realizando encontros regulares com os “experienciadores”. Inicialmente, esses encontros eram presenciais, mas, devido à pandemia, passaram a ser realizados online, quinzenalmente. Esses encontros são abertos a todas as pessoas, e os detalhes podem ser acessados no site: https://repensandoaloucura.wixsite.com/site. O objetivo é proporcionar acolhimento, informação, orientação e validação para essas experiências que, apesar de carregarem um potencial de transformação profunda, podem trazer muita incompreensão e sofrimento.
Ao mesmo tempo em que são identificados muitos desafios e resistências para que essa perspectiva bio-psico-sócio-espiritual do ser humano seja incorporada pela ciência, ao observarmos a história da saúde mental, podemos notar um grande avanço. Em 20 de maio de 2021, frente ao aumento da demanda na área da saúde mental devido à pandemia, a Organização Mundial da Saúde lançou um documento de 300 páginas, com adesão de 182 países, fazendo um apelo por mudanças radicais na área. Os novos modelos propostos apontam para abordagens mais centradas na pessoa, com maior respeito à subjetividade, autonomia, direitos humanos e diversidade.
O Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes, iniciado na Inglaterra por Paul Baker, e o Diálogo Aberto, iniciado na Finlândia por Jaakko Seikkula, são algumas referências que já estão ganhando mais espaço no Brasil. Em 2022, o Repensando a Loucura lançou a Rede Integrativa de Apoio Mútuo (RIAM), com o objetivo de levar essa perspectiva integral da saúde mental para organizações, empresas e escolas.
O sonho do Movimento Repensando a Loucura é integrar mais as iniciativas que estão surgindo, reconhecendo a importância de criar mais espaços seguros para uma expressão mais genuína e autêntica da subjetividade humana, onde as experiências espirituais e/ou anômalas possam ser vistas como fenômenos que fazem parte da história de toda a humanidade.
Ligia Splendore
Psicóloga Clinica
Pós-graduada em Psicologia Transpessoal pela ALUBRAT. Em formação internacional como facilitadora em Respiração Holotrópica (Grof Breathwork®) pelo Grof Legacy Training. Professora de Emergência Espiritual pela Alubrat São Paulo e Unipaz Goiás. Criadora do Movimento Repensando a Loucura.
ligiasplendore@gmail.com
www.iluminarpsicologia.com
repensandoaloucura.wixsite.com/site