Entre Tons e Texturas: Desafios de Criar Filhos em Relações Negras e Interraciais

Entre Tons e Texturas: Desafios de Criar Filhos em Relações Negras e Interraciais

Introdução
Família é o lugar onde buscamos proteção, apoio e satisfação de nossas necessidades básicas de sobrevivência. No entanto, quando falamos sobre famílias negras e interraciais, esses conceitos podem ser complicados pela presença de estruturas de opressão, como o racismo. Terapeutas familiares sistêmicos tradicionalmente focam nas interações e padrões de comunicação dentro do grupo familiar, mas, muitas vezes, negligenciam a complexidade de questões como raça, identidade e poder. Este artigo pretende lançar luz sobre os desafios específicos enfrentados por famílias negras e interraciais, discutindo a importância de uma abordagem terapêutica sensível ao racismo.

A Evolução da Terapia Familiar
A terapia familiar surgiu a partir de uma evolução no campo da psicoterapia, inicialmente focada no indivíduo e com pouca atenção ao contexto social ou familiar da pessoa. No entanto, ao longo do tempo, terapeutas começaram a perceber que dificuldades emocionais e comportamentais frequentemente estavam ligadas ao funcionamento e à dinâmica da família. Movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970 contribuíram para a expansão dessa abordagem, incluindo a importância de questões relacionadas ao poder, gênero, cultura e identidade étnico-racial nas relações familiares.
Entretanto, um olhar profundo para as famílias negras e interraciais e as dinâmicas de poder presentes em famílias compostas por pessoas negras e brancas ainda é um tema inexplorado. É fundamental reconhecer que o racismo é uma construção social que molda a estrutura da sociedade, também está presente na estrutura e no ambiente familiar.

Famílias Interraciais e Racismo Velado
O racismo nas famílias interraciais muitas vezes se manifesta de maneira sutil e velada. Relatos de casais interraciais indicam que a formação e a dinâmica de suas relações frequentemente são acompanhadas de tensões raciais. O desconforto pode surgir não apenas na sociedade, mas também dentro da própria família. Quando há uma diferença significativa na cor da pele ou na textura do cabelo entre os filhos, por exemplo, podem ocorrer manifestações de preferência por aquele que se aproxima mais da branquitude.
Hordge-Freeman (2018) aponta que a raça desempenha um papel significativo nas interações afetivas, variando ao longo da vida, mas intensificando-se em transições críticas, como o início do namoro, casamento e nascimento de uma criança. Em famílias birraciais (negra/branca), aspectos de opressão e privilégio podem coexistir, criando desafios únicos para os membros dessa unidade familiar.

A pesquisa “Despertar Racial: Como as famílias monorraciais negras e/ou inter-raciais preparam ou não ensinam ou não os seus filhos a se protegerem contra o racismo” revelou que famílias negras e interraciais enfrentam dificuldades ao preparar seus filhos para enfrentar o racismo. As narrativas de pais e mães mostram que o racismo pode se manifestar tanto fora quanto dentro da família. Quero trazer três experiências vividas por três participantes da pesquisa:

  • Ana: A Invisibilidade da Maternidade Negra
    Ana, uma mulher negra e coordenadora de unidade no Ministério Público Federal, traz um relato emblemático sobre como o racismo pode se manifestar de forma velada no cotidiano das famílias interraciais. Embora seu ex-marido seja um homem de pele mais clara, a paternidade dos filhos nunca é questionada quando eles estão apenas com ele. No entanto, quando Ana está presente, surgem dúvidas sobre se as crianças são realmente suas. Ana relata experiências em que foi vista como a babá de seus próprios filhos e questionada sobre sua legitimidade em espaços públicos e profissionais.
    Esses episódios não são incidentes isolados, mas reflexos da desumanização que mães negras frequentemente enfrentam em uma sociedade racista. A dúvida em relação à maternidade de Ana evidencia o preconceito que associa a pele negra à posição de subalternidade, mesmo dentro do ambiente familiar. Isso aponta para um fenômeno mais amplo: a desvalorização da maternidade negra e a constante necessidade de provar sua legitimidade e competência como mãe e profissional.
  • Arthur: O Racismo Velado e a Parentalidade
    Arthur, um homem negro, também compartilha experiências de racismo velado, destacando a tensão que surge quando a aparência fenotípica dos filhos é diferente da sua. Ele relata situações desconfortáveis, como estar em público com seu filho, que tem pele mais clara, e ser observado com desconfiança, como se estivesse “arrastando” a criança. Essa vigilância constante sobre pais negros, especialmente quando estão com filhos de pele mais clara, evidencia uma suspeita e um controle social embutidos nas relações raciais.Arthur narra ainda o impacto do racismo dentro do próprio núcleo familiar. Quando seu filho nasceu, ele percebeu comentários sutis sugerindo que o cabelo do menino deveria ser mantido curto para “não ficar ruim”. Isso reflete a presença do racismo dentro da família interracial, onde a textura do cabelo e o tom da pele são avaliados de acordo com padrões eurocêntricos de beleza e aceitação. A preocupação de Arthur em “armar” seu filho com informação para enfrentar o racismo demonstra a necessidade de preparar as crianças para um mundo onde o preconceito é uma realidade.
  • Michelle: O Racismo Internalizado e a Luta pela Aceitação
    Michelle apresenta uma perspectiva dolorosa do racismo internalizado, que começa dentro de sua própria família. Ela cresceu ouvindo comentários negativos sobre seu cabelo e seus traços físicos, especialmente por parte de sua mãe e padrasto. Michelle descreve como sua mãe, que não se reconhece como negra, perpetuou o racismo ao depreciar características associadas à negritude. A falta de aceitação e o silenciamento de sua identidade racial criaram um ambiente hostil, onde ela se sentia constantemente inferiorizada.Essa dinâmica se perpetua na criação de seus próprios filhos. Michelle expressa uma preocupação profunda com o fato de sua filha ter que enfrentar o racismo, especialmente em um ambiente familiar que inclui parentes. Ela se empenha em promover a aceitação e o amor-próprio em sua filha, ensinando-a a valorizar seus cabelos cacheados e seus traços fortes, numa tentativa de romper o ciclo de racismo e auto ódio que ela mesma enfrentou.

A Prática Terapêutica Antirracista
Terapeutas de família, especialmente aqueles que são brancos, precisam desenvolver uma postura ativa e participativa no processo terapêutico que ultrapasse as fronteiras do consultório. Green (2003) sugere que é importante reconhecer que membros de grupos raciais minoritários compartilham uma vulnerabilidade à discriminação racial, e que a cor da pele é uma característica organizadora fundamental de suas vidas.
Para trabalhar efetivamente com famílias negras e interraciais, os terapeutas devem desenvolver a sensibilidade racial, o que envolve reconhecer que a raça molda a realidade das pessoas e usar essa consciência para questionar ações e comportamentos que reforçam as injustiças raciais. Além disso, os terapeutas precisam buscar formação contínua sobre racismo, participar de grupos de estudo, envolver-se com comunidades e coletivos negros, e desenvolver estratégias de ação em conjunto com seus clientes.

Considerações Finais
A pesquisa discutida neste artigo mostrou que as famílias monorraciais negras e interraciais, em sua maioria, preparam seus filhos para uma sociedade racista, utilizando os recursos emocionais e socioeconômicos disponíveis. Esse preparo envolve diálogo e a escolha consciente de ambientes e materiais que fortalecem a identidade racial negra. No entanto, ainda é necessário aprofundar os estudos sobre como famílias monorraciais negras lidam com esses desafios e como as famílias monorraciais brancas preparam seus filhos para a diversidade racial. Compreender essas dinâmicas é fundamental para o desenvolvimento de uma prática terapêutica realmente antirracista.

O trabalho terapêutico com famílias negras e interraciais exige um compromisso ativo do terapeuta em compreender e combater o racismo, não apenas no contexto terapêutico, mas também na sociedade em geral. O terapeuta deve estar disposto a sair da zona de conforto e se envolver em ações afirmativas para desconstruir o racismo, oferecendo um espaço de cura e fortalecimento para essas famílias.

Marilia Gabriela Leme

Marilia Gabriela Leme

Psicóloga e Psicoterapeuta de Indivíduos, Casais e Famílias

Contato: gabi.leme.psicologa@hotmail.com
Instagram: @despertarracial
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Whatsapp: (11) 99837 3091
GREEN, R.J. A Raça e o Campo da Terapia de Família. In: MCGOLDRICK, M. Novas Abordagens a Terapia Familiar – Raça, Cultura e Gênero na Prática Clínica. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Roca, 2003.

HORDGE-FREEMAN, E. A cor do Amor: Características raciais, estigma e socialização em famílias negras brasileiras. Trad. Victor Hugo Kebbe. São Carlos: UFSCar, 2018.

LEME, M.G. Despertar racial: como as famílias monorraciais negras e/ou inter-raciais preparam ou não, ensinam ou não os seus filhos a se protegerem contra o racismo. 2021. Monografia (Especialização em Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Núcleo de Família e Comunidade, São Paulo, 2021. Orientadora: Prof. Dra. Claudia Beatriz Stockler Bruscagin.
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SCHUCMAN, L.V. Famílias Inter-Raciais tensões entre cor e amor. Salvador: EDUFBA, 2018.