Memória corporal, trauma racial e religações de afetos na perspectiva poética e de Ferenczi
O conceito de trauma e seus desdobramentos são contribuições fundamentais do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi. O teórico aponta entre outras questões, a importância de nos atentarmos aos comportamentos dos adultos em relação à criança que sofreu o traumatismo (1932/1992, p. 111), que podem afetar ainda mais do que o próprio trauma, ocasionando danos no desenvolvimento de suas identidades e vínculos afetivos. Neste texto, gostaria de convidar os analistas a também refletirem sobre seus comportamentos frente a escuta do racismo no atendimento com pessoas negras e como a teoria de Ferenczi e a poesia podem ser recursos para a conscientização racial, religação de afetos e alargamento de possibilidades criativas dos sujeitos expostos a constantes retraumatizações e desmoronamentos, frente as violências do racismo, que podem ocorrer inclusive, nos atendimentos psicanalíticos.
O trauma racial muitas vezes é da ordem do inominável. A psicanalista e artista Grada Kilomba (2019, p.214) nos diz que “o trauma do colonialismo, do racismo é tão violento e intenso, para qual a cultura não fornece equivalentes simbólicos.” Como podemos então, ouvir um corpo constantemente violentado? Silenciado? Desmentido? Um corpo negro sofre desumanização. Um aprisionamento, uma captura de si. Um desmantelamento de seu reconhecimento e de suas capacidades criativas. Se não vemos, enquanto analistas, um corpo negro, com tudo o que ele representa e expressa, e tudo o que é projetado nele, como vamos conseguir ouvir as histórias, marcas, vestígios e auxiliar no processo de despertar as lembranças nele registradas?
Na clínica psicossomática psicanalítica, o corpo, a sensorialidade e a contratransferência são elementos de comunicação, relação e encontro. Encontro que só é possível, se cada analista repensar seus preconceitos e sua insensibilidade, como nos aponta Ferenczi. E além do embasamento teórico, o que pode nos conectar com nossa sensibilidade e senso crítico, social e cultural, é a arte, a poesia:
“Nosso conhecimento não era de estudar em livros.
Era de pegar de apalpar de ouvir e de outros sentidos.
Seria um saber primordial?
Nossas palavras se juntavam uma a uma por amor e não por sintaxe”.
(Barros, 2015, p. 15)
O encontro no setting analítico com a poesia pode devolver voz, aquilo que ficou encapsulado. Tocar. Transformar. Os livros de poesia, principalmente de poetas negros, podem ser elementos que acessam camadas muito profundas. A poeta Conceição Evaristo, em seu livro Poemas da Recordação e outros movimentos, escreve:
“Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos
que só o silêncio
da poesia penetra.”
(Evaristo, 2021, p 121).
A poesia também contribui com o letramento racial dos analistas de forma mais simbólicas. O rap (ritmo e poesia) por exemplo, possibilita que o sujeito fale sobre si, das questões sociais, afetivas, políticas, sofrimento psíquico, senso coletivo e de comunidade, de suas lutas, entre tantas outras questões. E por ser um movimento que surge nas periferias, fica à margem, não sendo devidamente reconhecido como instrumento potente de conexões e escuta.
Vivendo em um país estruturalmente racista, atuar na contramão das exclusões é contribuir com a valorização e resgate ancestral da riqueza cultural dos povos negros, inclusive como recursos que podem auxiliar nos processos de elaborações dos traumas raciais.
Além de acessar as dores, quando lemos uma poesia para nossos analisandos, por exemplo, podemos tocar esse corpo com afetos. O “sentir com” de Ferenczi, pode ser instrumento político poético do analista: utilizar a arte, a música, a poesia, como ponte que pode ligar aquilo que se desconectou pelo trauma, que muitas vezes não consegue ser acessado, dito ou não fará sentido ser apenas interpretado. O corpo pode falar com/através da poesia.
Sou uma analista negra que atende pessoas negras. Também sou poeta. A escrita me possibilidade dançar com as palavras. E por trabalhar com a poesia em minha clínica, me aproximar dos saraus, de artistas periféricos, percebo cada vez mais a importância do movimento poético no setting analítico, como elemento emancipatório. Integrativo do sujeito consigo mesmo e do sujeito com o mundo.
A poesia nasceu
Da anassemia
De tentar transformar o que ainda não tem representação
Em palavras
E ela falha
Sempre
Porque a poesia
Transborda
A palavra
(Letícia Silva)
Pensar especificamente na escrita/poesia como instrumento de (re)ligação de afetos e (re)conhecimento é uma aposta. Barros (2015) aponta que: “escrever o que não acontece é tarefa da poesia.”
E nós analistas, conseguimos enxergar que mesmo sem ser poeta, Ferenczi deixou para nós um legado poético em suas obras? Em nossas clínicas, arte e psicanálise podem caminhar mais próximas?
Acredito que uma das formas de composição dessa clínica que priorize a arte e a poesia como recursos de acolhimento ao sofrimento de pessoas negras e enfrentamento ao racismo seja pelo caminho da criatividade. Criar junto com nossos analisandos possibilidades de nomeação, testemunho, reconhecendo os efeitos traumáticos do racismo, que podem romper identidades, vínculos e lugares de pertencimento, mas também reconhecendo a poesia, o samba, o rock, o rap, o blues, que há em cada subjetividade negra, em sua singularidade e multiplicidade, compondo uma escuta clinico poética, como elasticidade da técnica analítica.
A roda dos não ausentes
O nada e o não,
ausência alguma,
borda em mim o empecilho.
Há tempos treino
o equilíbrio sobre
esse alquebrado corpo,
e, se inteira fui,
cada pedaço que guardo de mim
tem na memória o anelar
de outros pedaços.
E da história que me resta
estilhaçados sons esculpem
partes de uma música inteira.
Traço então a nossa roda gira-gira
em que os de ontem, os de hoje,
e os de amanhã se reconhecem
nos pedaços uns dos outros.
Inteiros.
(Evaristo, 2021, p.12)

Letícia Gonçalves da Silva
psicóloga e psicanalista
Letícia Gonçalves da Silva, psicóloga e psicanalista
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EVARISTO, C. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2021.
FERENCZI, S. (1932). Reflexões sobre o trauma. In: Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. v. IV. (p. 111).
FERENCZI, S. (1933). Confusão de língua entre os adultos e a criança. In: Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. v. IV.
KILOMBA, G. Memórias de Plantação – Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
PRATES, L. Um corpo negro. São Paulo: Nossa Editora, 2023.