O Silêncio das Mulheres: Reconhecendo e Superando o Abuso Narcisista

Introdução
A violência em relacionamentos de casais é uma realidade preocupante que afeta inúmeras mulheres em todo o mundo, com consequências devastadoras para a saúde mental e a vida das vítimas. Quando o parceiro apresenta traços narcisistas, a situação pode se tornar ainda mais complexa e destrutiva. Estudos recentes indicam que traços de narcisismo e psicopatia em parceiros românticos estão associados a sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) nas vítimas, destacando o impacto psicológico único que esses relacionamentos podem ter (Fonte: www.sciencedirect.com).
Qualquer pessoa pode ser vítima de abuso, porém mulheres em relacionamentos íntimos heterossexuais enfrentam desafios específicos e se tornam mais vulneráveis. Expectativas sociais de submissão feminina e uma cultura que frequentemente normaliza comportamentos abusivos masculinos contribuem para isso. Compreender a complexidade desses relacionamentos, identificar os sinais de alerta do abuso e seus impactos são passos essenciais no caminho da superação e recuperação das vítimas.

Violência x Relacionamentos Abusivos
Embora a violência seja um componente central dos relacionamentos abusivos, nem todo relacionamento com violência é classificado como “abusivo”.
A violência é definida pela OMS como o uso intencional de força física ou poder, real ou ameaçado, contra uma pessoa ou grupo, que resulta ou tem alta probabilidade de resultar em dano, sofrimento físico ou psicológico. Essa definição abrange diversos contextos, incluindo familiares, comunitários e institucionais, e não se limita a relacionamentos íntimos.

• Relacionamento abusivo é um padrão de comportamento em um relacionamento íntimo onde um parceiro exerce controle e poder sobre o outro através de diversas formas de abuso, que podem incluir violência física, emocional, psicológica e sexual. Este tipo de relacionamento é caracterizado por padrões repetitivos de manipulação e controle emocional. O abuso é frequentemente associado a dinâmicas de poder desequilibradas, onde um parceiro busca dominar o outro.

O Mito de Narciso e Eco
O mito grego de Narciso e Eco pode ser utilizado como uma forma de compreensão das dinâmicas de relacionamentos abusivos com narcisistas.
Narciso era um jovem belo e atraente que se apaixonou por sua própria imagem refletida na água. Eco, uma ninfa com uma voz encantadora, condenada por Hera a apenas repetir as palavras que ouvia, se apaixonou por Narciso. Repelida, Eco definha até que resta apenas sua voz, ecoando no vazio.
Obcecado por sua própria imagem, Narciso simboliza a incapacidade de se relacionar autenticamente com o outro e de se conectar verdadeiramente. Eco representa a voz silenciada das mulheres em relacionamentos abusivos narcisistas, que podem se tornar dependentes do parceiro para validar sua existência e suas emoções e perder a conexão com seus próprios desejos e necessidades.

Entendendo o Narcisismo
O Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN), conforme o DSM-5, é caracterizado por grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia. Indivíduos com comportamentos e características narcisistas tendem a explorar os outros para atingir seus próprios objetivos, com uma clara falta de empatia pelas emoções ou necessidades alheias. Suas relações interpessoais são frequentemente disfuncionais devido à dificuldade de aceitar críticas, arrogância e a tendência de manipular ou desvalorizar a parceira.
Embora nem todos os narcisistas sejam abusivos, essas características podem facilitar comportamentos abusivos. Da mesma forma, nem todo relacionamento abusivo envolve pessoas com traços narcisistas, pois o abuso pode ocorrer em diversas dinâmicas relacionais.

O Ciclo de Abuso Narcisista
O ciclo do abuso narcisista é um padrão de comportamento tóxico caracterizado por várias etapas, refletindo a dinâmica de controle e manipulação que caracteriza esse tipo de relacionamento. Em geral as etapas incluem: Idealização, Desvalorização, Rejeição/ Desaparecimento, Gaslighting, Reconciliação/ Idealização – o que cria a esperança de que as coisas vão melhorar e mantem a vítima na relação. Este ciclo pode se repetir várias vezes.

Manipulação e Gaslighting
Diversas formas de manipulação estão presentes no abuso narcisista, utilizadas para levar a mulher a agir de acordo com os seus desejos ou necessidades. Entre elas o Gaslighting, uma forma de manipulação psicológica em que o abusador distorce a realidade, fazendo a vítima duvidar de sua própria percepção e sanidade. O termo tem origem na peça “Gas Light” de 1938, em que um marido manipula elementos do ambiente para convencer sua esposa de que está enlouquecendo. Essa prática é comum em relacionamentos abusivos e se caracteriza por:

  • Negação da realidade: O abusador mente ou distorce informações, negando fatos evidentes.
  • Minimização de sentimentos: Quando a vítima expressa emoções, o abusador a desacredita, alegando que está exagerando.
  • Desorientação: O abusador cria situações que confundem a vítima, levando-a a questionar sua memória e julgamento.
  • Culpar a vítima: O manipulador faz com que a vítima acredite ser responsável pelos problemas do relacionamento.O Gaslighting é um abuso grave que provoca confusão e abala a confiança da mulher em sua própria percepção e avaliação da realidade.

Fatores que Dificultam a Percepção do Abuso
Muitas mulheres enfrentam desafios para reconhecer que estão em um relacionamento abusivo. Essa dificuldade pode ser atribuída a fatores emocionais, culturais e estruturais que influenciam a percepção da violência. Entre esses fatores está a estrutura patriarcal da sociedade, que coloca as mulheres em uma posição de submissão e inferioridade em relação aos homens, normalizando comportamentos que desvalorizam a figura feminina.
Racionalizar, minimizar e negar o abuso são frequentes mecanismos de proteção que as vítimas utilizam para lidar com a dor emocional. Muitas mulheres internalizam a responsabilidade pelo abuso, acreditando que são culpadas pelas ações do parceiro. Essa culpa, aliada à vergonha das experiências vividas, pode levar as mulheres a esconderem a situação de familiares e amigos, isolando-se ainda mais e prolongando a permanência em uma dinâmica de violência e submissão (Herman, 1992).

Características em Diferentes Tipos de Relacionamentos
Reconhecer a situação vivida pode ser difícil, mas constitui o primeiro passo rumo à transformação e libertação. A tabela abaixo ajuda a identificar e diferenciar características comuns em relacionamentos com narcisistas, relacionamentos abusivos em geral e relacionamentos saudáveis.

 

Efeitos do Abuso Narcisista
As experiências abusivas em relacionamentos com parceiros narcisistas podem ter um impacto devastador na saúde mental das vítimas, levando ao desenvolvimento de distúrbios emocionais, como transtornos de ansiedade, depressão grave e TEPT (www.sciencedirect.com).
Os efeitos nas mulheres que vivem em relacionamentos abusivos com parceiros narcisistas incluem:

  • Perda de Autoconfiança: Críticas constantes e desvalorização podem minar a autoconfiança, levando a uma visão negativa de si mesma.
  • Dificuldade em Formar Laços Saudáveis: A manipulação e o controle emocional dificultam a capacidade de confiar e estabelecer relacionamentos saudáveis no futuro.
  • Isolamento Social: O isolamento imposto pelo parceiro abusivo intensifica a solidão e a vulnerabilidade emocional.
  • Confusão e Dúvidas: Práticas como o gaslighting podem levar a vítima a questionar sua própria percepção da realidade, resultando em confusão e insegurança.
  • Sintomas Físicos: O estresse emocional pode manifestar-se fisicamente, causando dores de cabeça e distúrbios gastrointestinais.
  • Dependência Emocional: A dinâmica abusiva pode criar uma sensação de incapacidade de deixar o relacionamento, perpetuando o ciclo de abuso.

A Psicoterapia como Pilar na Recuperação do Abuso Narcisista
A psicoterapia é um recurso essencial para a recuperação de mulheres que sofrem abuso narcisista. Mais do que aplicar técnicas, a presença genuína e acolhedora da psicoterapeuta cria um espaço seguro para que essas mulheres possam compartilhar e explorar seus sentimentos e experiências, sem medo de julgamento.
Compreender a dinâmica dos relacionamentos abusivos através do mito de Narciso e Eco pode ser uma ferramenta valiosa para que as vítimas reconheçam seus padrões de comportamento e vislumbrem caminhos de superação e transformação pessoal e da dinâmica relacional. Esse processo envolve recuperar a própria voz e identidade, reconstruir a autoestima e autoconfiança, desenvolver uma visão mais positiva de si mesma e estabelecer limites saudáveis.
Tenho trabalhado com a integração de diferentes abordagens no tratamento e apoio de mulheres que enfrentam ou enfrentaram o abuso narcisista, entre elas a Sistêmica, EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento por Movimento Ocular) e IFS (Terapia do Sistema Familiar Interno).
A abordagem Sistêmica permite explorar as dinâmicas relacionais, identificando como certos padrões de comportamento se formaram e se repetem ao longo das gerações. Em muitos casos, incluir familiares ou amigos no processo terapêutico pode ser essencial para a recuperação da mulher. A EMDR é altamente eficaz no reprocessamento de memórias traumáticas ligadas ao abuso, além de tratar sintomas do Transtorno do Estresse Pós-Traumático, como flashbacks e hipervigilância. O IFS é uma abordagem que facilita a identificação, o acolhimento e a cura das partes internas afetadas pelo abuso, integrando-as ao Sistema Interno por meio de uma conexão amorosa e compassiva.

Conclusão
Os relacionamentos abusivos, especialmente aqueles envolvendo parceiros com traços narcisistas, deixam cicatrizes emocionais e psicológicas profundas nas vítimas. A psicoterapia se destaca como um caminho essencial para tratar os efeitos do abuso, oferecendo um espaço seguro onde as mulheres podem desenvolver recursos para romper com o ciclo do abuso, reconstruir sua autoestima e autoconfiança e se reconectarem com a sua força interior.
A compreensão das características e dos impactos do relacionamento abusivo narcisista é crucial para personalizar o tratamento de saúde mental da vítima, promovendo uma recuperação mais eficaz. Ao integrar diferentes abordagens psicoterapêuticas, como a Sistêmica, EMDR e IFS, o processo se torna mais profundo e abrangente. Isso permite que as mulheres recuperem sua própria voz, identidade e autonomia, facilitando a construção de uma vida mais equilibrada e saudável.

Rosalina de Jesus Moura

Rosalina de Jesus Moura

Psicóloga, Especialista em Psicoterapia de Casais e Famílias pela PUC/SP. Psicoterapeuta Certificada EMDR.


Instagram: @rosalinamoura_psicologa

Referências
American Psychological Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Traduzido por Maria Inês Corrêa Nascimento. Porto Alegre: Artmed, 2014.
Organização Mundial da Saúde. Estimativas Globais de Prevalência de Violência contra as Mulheres, 2018. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 2021.
Shapiro, F. Dessensibilização e Reprocessamento por Movimentos Oculares (EMDR). São Paulo: Roca, 2016.
Goulart, J. (2017). Mentes Perigosas: O Psicopata Mora ao Lado. Fontanar.
Schwartz, R. C. (2022). Terapia do Sistema de Família Interna: Manual do Terapeuta. Cultrix
Van der Kolk, B. A. (2016). The Body Keeps the Score: Brain, Mind, and Body in the Healing of Trauma. Viking.
Walker, L. E. (2016). Síndrome da Mulher Maltratada. Editora Saraiva.
Stern, R. (2021). O Efeito Gaslighting: Como Reconhecer e Sobreviver à Manipulação de Pessoas que Tentam Controlar Você. Cultrix.