O Tripé de formação do psicoterapeuta: parâmetros nas Diretrizes Curriculares dos psicólogos

O Tripé de formação do psicoterapeuta: parâmetros nas Diretrizes Curriculares dos psicólogos

O formato inicial da psicoterapia emergiu a partir de Sigmund Freud, quando ele se dá conta da natureza do encontro e diálogo entre ele e uma jovem de 21 anos em 1880, e que potencializou mudanças e alívio de seu sofrimento psíquico. Trata-se da talking cure, a cura através do diálogo socrático entre um profissional de saúde e seu paciente.

Mais adiante, Freud explica o quanto este ofício é ímpar, exigindo um estudo teórico continuado, não só bibliográfico, mas também através da participação nos debates nas sessões científicas das associações psicanalíticas, que promovem encontros pessoais com os membros mais antigos e experimentados. Já a aprendizagem prática aconteceria primeiro na psicanálise do próprio profissional, ou seja, só seria possível que se atenda uma pessoa se o profissional tiver tido este tipo de cuidado e atenção. Além disto, se exigia que a prática junto aos pacientes fosse orientada e mesmo controlada por um psicanalista mais experiente, o supervisor clínico.

Esta estrutura de formação constitui o chamado tripé de formação, que se estende hoje a quase todas as abordagens psicoterapêuticas, consistindo então no estudo teórico, na psicoterapia pessoal e finalmente na prática clínica supervisionada (Freud, 1919 apud Brauer, 2001 ) .

Debatemos a seguir alguns processos inerentes à formação em psicoterapia psicodinâmica, entendendo que este é um termo que abriga as abordagens que trabalham com conceitos semelhantes ao do conflito psicológico entre consciente e inconsciente, o que o sujeito sabe racionalmente sobre si mesmo em contraste com forças psicológicas profundas das quais ele não tem consciência, mas que também determinam seu sentir e agir (o que chamamos de determinismo psíquico).

Nas abordagens psicodinâmicas se exige um exame constante da natureza do vínculo entre o terapeuta e seu paciente, pensado através dos conceitos de resistência, transferência e contratransferência. O entendimento constante do vínculo terapêutico só acontece se o “setting” (o cenário ou contexto onde o trabalho acontece) for estabelecido de forma segura e confiável. Por isto, se delimita o SIGILO de tudo o que o paciente expõe e vivencia, o ANONIMATO do terapeuta (que só fala de suas experiências pessoais se isto estiver a serviço do paciente), e, finalmente, se mantem firmemente a postura de NEUTRALIDADE do terapeuta (que acompanha o que o paciente apresenta sem julgamentos que tenham como referências posições e experiências alheios ao contexto de vida emocional e realidade social do próprio paciente). Então, é a estabilidade do trabalho psicoterapêutico que exige um contrato profissional muito claro, onde se explicita também a frequência e duração das consultas e o pagamento das mesmas. No caso da psicoterapia em instituições públicas ou comunitárias, o pagamento se configura através da própria adesão ao trabalho, que garante que o paciente mantenha o direito a esta forma de cuidado (isto é colocado em regras como “duas faltas não justificadas cancelam sua vaga”). O setting também pressupõe as funções dos personagens que habitam este cenário: o psicoterapeuta escuta, o paciente apresenta vivências e percepções, inclusive suas queixas conscientes e as demandas inconscientes, da forma mais transparente que lhe for possível.

Como se verifica no estudo da conformação inicial das práticas da talking cure, elas eram realizadas por pessoas que frequentavam as associações psicanalíticas, inicialmente médicos como Sigmund Freud, um neurologista. Ou seja, se tratava de uma especialidade desenvolvida entre cuidadores de saúde. Entretanto, logo a seguir, o próprio Freud relativizou a exigência de que os candidatos a praticantes de psicanálise fossem médicos, introduzindo pessoas sem formação em saúde como candidatos à psicanalistas. Até as décadas de 20 e 30, no Brasil e em outros países, a psicanálise era acessível a diferentes categorias profissionais, e gradualmente a institucionalização das associações de formação especializada colocou a exigência de posse de um diploma de medicina, ou, mais tarde, do diploma de psicólogo. Atualmente esta exigência nos institutos de formação mais tradicionais comporta que haja algumas exceções, conforme o currículo do candidato.
De qualquer forma, fica claro que desde o início a formação em psicoterapia é um percurso de especialização, não de graduação.

Entretanto, as Diretrizes Curriculares de formação do psicólogo até a Resolução nº 5, de 15 de março de 2011 permitiam alguma confusão com relação à natureza especializada desta formação, pois previam no Art. 8º que o psicólogo deveria ter uma série de competências de desempenhos e atuações a partir do domínio básico de conhecimentos psicológicos e a capacidade de utilizá-los em diferentes contextos, realizando a investigação, análise, avaliação, prevenção e atuação em processos psicológicos e psicossociais e na promoção da qualidade de vida. Isto incluía o item XII: realizar orientação, aconselhamento psicológico e psicoterapia.

Assim, alguns formandos em psicologia entendiam estar aptos à função de psicoterapia após a graduação, dispensando a necessária formação posterior em um instituto de especialização.
Já a ultima Diretriz de formação do psicólogo, a Resolução CNE/CES número 1 de 11 de outubro de 2023, em consonância com a Declaração Internacional de Competências Fundamentais na Psicologia Profissional de 2016, esclarece que, de fato, o psicólogo apenas inicia sua formação como terapeuta na graduação. Assim, as competências de intervenção psicológica não explicitam mais o termo psicoterapia, passando a indicar que as competências da graduação são apoio e orientação psicológica. O texto sobre a competência específica de intervenção passa a ser o seguinte: IX – Realizar intervenções psicológicas e psicossociais, tendo como base os seguintes fundamentos: a) planejar, integrando dados de avaliação, intervenções psicológicas com indivíduos, grupos, comunidades, organizações e sociedade; b) implementar intervenções psicológicas utilizando métodos apropriados às metas e aos objetivos da intervenção; c) avaliar a utilidade e a eficácia das intervenções utilizando métodos apropriados; d) utilizar os resultados obtidos nas avaliações para revisar ou modificar as intervenções, quando pertinente; e e) assegurar orientação e apoio a outros atores envolvidos no processo de intervenção, quando pertinente.

Cabe então continuarmos o debate sobre as condições em que se dão a formação especializada, garantindo que o tripé de formação esteja em curso, no que tange a necessidade de psicoterapia pessoal, o estudo teórico na abordagem escolhida e a prática supervisionada por profissional mais experiente. Pessoalmente, entendo que este debate poderia incluir o possível entendimento de que a atuação em Saúde Mental exige uma graduação anterior como profissional de saúde mental, pois o psicoterapeuta é, essencialmente, um cuidador, lembrando o termo grego therapon, aquele que serve atendendo alguém.

Dra. Jônia Lacerda Felício

Dra. Jônia Lacerda Felício

Psicóloga Clinica.

Coordenadora Curso de Psicologia Faculdade das Americas-SP · Centro Universitário FAM
Psicóloga Clinica. Coordenadora e docente no Curso de Psicologia FAM. · Psicóloga com graduação, mestrado e doutorado pelo Instituto Psicologia USP.

Bibliografia
Brauer, J F Algumas reflexões sobre o tema o ensino da psicanálise na universidade Psicol. USP 12 (2), 2001
Feijó, L P; Silva, N B Experiência e formação profissional de psicoterapeutas psicanalíticos na utilização das tecnologias de informação e comunicação Psicologia: Ciência e Profissão Abr/Jun. 2018 v. 38 n°2, 249-261.
Freud, S. Deve a psicanálise ser ensinada na universidade? In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969
Gabbard G.; Beck, J.S; Holmes, J Compendio de psicoterapia de Oxford Porto Alegre: Artmed; 2007.