Psicoterapia baseada em evidências: mecanismo de mudanças efetivas para nossa prática clínica.
Uma parceria entre o Sistema Conselhos de Psicologia, o Associação Brasileira de Psicoterapia (ABRAP) e a Associação Brasileira de Psicologia (ABEP) permitiu a publicação, em 2022, do caderno Reflexões e Orientações sobre a Prática da Psicoterapia (Conselho Federal de Psicologia, 2022), no qual, reconhecendo que nenhuma definição será completa ou se aplicará às inúmeras modalidades dessa prática, afirma-se:
“…psicoterapia é um campo de conhecimentos teóricos e técnicos, e uma prática de intervenção sustentada por esses conhecimentos, que se desenvolve em um relacionamento interpessoal. O processo psicoterapêutico se respalda em métodos e técnicas, sob uma perspectiva biopsicossocial, reconhecidos pela ciência por sua eficiência e eficácia, e orientados pela ética profissional (parte da definição redigida pelo grupo de psicoterapeutas instituído pela ABRAP, 2018-2019).” p. 11
Se partimos do pressuposto de que a psicoterapia é uma prática com bases científicas, que não deve ser confundida com outros tipos de práticas e conhecimentos, não fundamentados nessas bases, é imperativa a preocupação e a valorização da pesquisa científica, como geradora de comprovações de sua eficácia, eficiência, efetividade e segurança. Assim, os avanços teóricos e práticos, no campo da psicoterapia, são resultado não apenas das reflexões e discussões sobre sua prática, mas dos conhecimentos gerados pela pesquisa. A prática clínica, cujo valor não estamos aqui contestando, não é suficiente para estabelecer a validade de seus resultados. Um risco importante e conhecido aí presente, para citar apenas um, é a visão muitas vezes excessivamente otimista que o psicoterapeuta tem sobre os resultados de seu trabalho e sobre o que seus pacientes obtêm dele. É preciso que a própria prática clínica se fundamente em evidências científicas, que nos permitam alguma compreensão sobre os múltiplos fatores envolvidos.
É interessante observar que um dos maiores impulsos à pesquisa em psicoterapia foi dado por uma discussão entre autores que defendiam diferentes abordagens teóricas, em meados do século XX (Wanpold, 2013). Hans Jürgen Eysenck publicou, em 1952, uma revisão de estudos sobre psicoterapias psicanalíticas e psicodinâmicas, concluindo que elas não eram eficazes e poderiam inclusive ser prejudiciais, ao contrário da terapia comportamental. A resposta a essas conclusões surgiu no primeiro número da revista Psychotherapy: Theory, Research, & Practice, em 1963, em artigo publicado por Hans Hermann Strupp (Strupp, 1963), um adepto das psicoterapias psicodinâmicas, que criticava as conclusões de Eysenck e sugeria novos caminhos para a pesquisa nessa área. Essa discussão teve sequência e acabou por incentivar o desenvolvimento de estudos mais complexos, de novas metodologias e de pesquisas sobre diferentes aspectos implicados nas psicoterapias.
Muitos estudos se dedicaram a tentar demonstrar que um determinado tipo de abordagem ou de técnica obtinha melhores resultados que outros. Além disso, as pesquisas se diversificaram, e buscaram diferentes objetivos, entre os quais se destacam a tentativa de estabelecer quais são as psicoterapias mais eficazes para determinados tipos de casos ou diagnósticos clínicos, quais os efeitos de características do psicoterapeuta sobre os resultados do processo, quais os efeitos da frequência das sessões, do monitoramento formal e do feedback da resposta ao tratamento. Ainda, diversas comparações de resultados, entre psicoterapia e ausência de intervenção, entre psicoterapia e medicação, e entre diferentes modalidades de psicoterapias. Durante um bom tempo, as pesquisas se dedicaram, por um lado, a tentar provar se a psicoterapia é ou não eficaz, e, por outro, qual tipo de psicoterapia é mais eficaz. Estudos demonstraram que diferentes psicoterapias podiam igualmente obter resultados positivos, o que motivou o surgimento de pesquisas que se dedicaram à busca de “fatores comuns”, ou seja, das variáveis presentes em diferentes tipos de psicoterapias, que se mostraram muitas vezes mais potentes do que os fatores específicos de diferentes abordagens. (Messer & Wampold, 2002). Um fator comum que se mostrou relevante é a aliança terapêutica (Lambert & Ogles, 2014), um termo usado para descrever a relação de trabalho que se estabelece entre o paciente e o psicoterapeuta durante a psicoterapia, que demonstra forte influência na manutenção do processo e em seus resultados.
A esses estudos forem se somando outros, ligados à busca de uma visão mais detalhada dos resultados, do processo de mudança e de seus mecanismos subjacentes, para se compreender por que as pessoas mudam, como elas mudam e como melhor ajudá-las a mudar. O conhecimento sobre esses fatores oferece ao clínico instrumentos de grande valia para sua prática.
Certamente todos reconhecemos a complexidade do processo psicoterapêutico, em suas diversas possibilidades, assim como dos fatores envolvidos. Isso dá margem a uma multiplicidade de problemas e de possibilidades de pesquisa. Com a evolução da tecnologia, que ampliou consideravelmente o acesso à informação, é tão grande o montante de conhecimento acumulado, que se torna imperativo contar com ferramentas que ajudem a buscar, organizar e avaliar a qualidade dessas informações. A busca por evidências científicas organizadas e avaliadas, a partir desse grande volume de trabalhos, levou ao desenvolvimento da técnica de Revisão Sistemática da literatura sobre determinado tema. A ela pode-se somar, quando possível, a meta-análise, com o uso de técnicas estatísticas que permitem sintetizar os resultados de várias pesquisas e gerar novas conclusões.
Em 2005, a APA- Associação Americana de Psicologia, criou a Task Force on Evidence Based Practice (TSE-BP), para incentivar o desenvolvimento de estudos sobre evidências científicas no campo da Psicologia. Outras áreas da saúde, em especial a Medicina e a Enfermagem, já tinham atingido um bom desenvolvimento nessa busca. A iniciativa da APA envolve dois aspectos importantes: primeiro, o alerta de que, se esse desafio não for enfrentado pelos profissionais da área, abre-se o espaço para que qualquer pessoa não habilitada divulgue critérios sem bases científicas; e a importante afirmação de que, para se chegar às melhores evidências, é preciso integrar dados de pesquisa sistemática e da experiência e habilidade clínica do psicólogo, contextualizados a partir da cultura, características e preferências dos usuários dos serviços (APA, 2005).
A TSE-BP define a psicologia baseada em evidências como a integração da melhor evidência disponível na pesquisa à habilidade técnica do psicólogo, contextualizando as características individuais e culturais dos pacientes, bem como as suas preferências. (Melnik & Atallah, 2011).
A melhor evidência científica disponível é considerada em relação a efetividade, eficiência, eficácia e segurança das intervenções psicoterápicas pesquisadas (Melnik; Souza & Carvalho, 2014), ou seja, respectivamente: o quanto as intervenções demonstram funcionar na prática “real” com o paciente; o quanto elas demonstram bons resultados a longo prazo; o quanto elas funcionam nos contextos ideais dos estudos controlados; e o quanto seus efeitos são confiáveis, sem ou com pouquíssimos riscos iatrogênicos. As evidências são classificadas em níveis, de acordo com sua confiabilidade e qualidade, relacionadas aos tipos de delineamento das pesquisas.
Portanto, dentro desse referencial, os resultados de pesquisas precisam ser considerados em conjunto com a expertise do psicoterapeuta, que envolve também suas habilidades clínicas, que devem estar em contante aprimoramento, e com os valores e características socioculturais do paciente, que deve ter papel ativo no processo. Esta visão incentiva a aproximação entre o trabalho de pesquisadores e de clínicos, o que muitas vezes parece bastante difícil.
Há ainda muitos desafios a serem enfrentados. Apenas para citar alguns: é preciso que as pesquisas se aproximem mais da prática real, da qual, muitas vezes, na busca do rigor metodológico, elas se distanciam; por outro lado, é preciso que os clínicos se envolvam mais com as discussões sobre pesquisa, pois é a partir de sua experiência em cenários reais que se pode levantar quais desafios e necessidades devem ser a base para novas pesquisas. Sabemos das enormes dificuldades que os pesquisadores enfrentam, em nosso país, dados os poucos incentivos que recebem e as limitadas condições para a realização de seu trabalho. Mas é fundamental desenvolver pesquisas brasileiras, que envolvam a nossa população, suas demandas e as psicoterapias aqui praticadas.
A importância da pesquisa como base para a atividade clínica tem sido amplamente reconhecida, uma vez que fornece maior segurança, não apenas para o trabalho individual ou grupal, mas também para a tomada de decisões relacionadas a políticas públicas na área da saúde e a programas de prevenção e intervenção. Espera-se, portanto, que os psicólogos clínicos se apropriem desse conhecimento e o levem em conta em sua prática. Não se espera que todo clínico seja um pesquisador, mas que, ao menos, seja um estudioso dos resultados das pesquisas e os utilize como elementos fundamentais, associados à sua própria experiência. Ao se considerar, como foi dito acima, que as melhores evidências científicas advêm da integração entre os resultados de pesquisas de boa qualidade com a experiência e a habilidade do psicoterapeuta, contextualizando as características individuais e culturais dos pacientes, incentiva-se e oferece-se caminhos para uma visão mais ampla e integrada dos inúmeros fatores envolvidos no processo.
Iraní Tomiatto de Oliveira
Doutor em psicologia
Iraní Tomiatto de Oliveira
Doutora em Psicologia
Email: iranitomiatto@gmail.com
APA Presidential Task Force on Evidence-Based Practice (2005). Evidence-based practice in psychology. American Psychologist, May-Jun;61(4):271-85.
Conselho Federal de Psicologia (2022). Reflexões e Orientações sobre a Prática da Psicoterapia. Disponível em: https://site.cfp.org.br/publicacao/caderno-reflexoes-e-orientacoes-sobre-a-pratica-da-psicoterapia/
Eysenck, H. J. (1952). The effects of psychotherapy: An evaluation. Journal of Consulting Psychology, 16, 319 –324. doi:10.1037/h0063633
Lambert, M. J., & Ogles, B. M. (2014). Common factors: Post hoc explanation or empirically based therapy approach? Psychotherapy, 51(4), 500-504. https://doi.org/10.1037/a0036580
Melnik, T. (Org.) (2024) Prática da Psicologia baseada em evidências. Santana do Parnaíba (SP): Manole.
Melnik, T.; Souza, W. F & Carvalho, M. R. (2014). A Importância da prática da psicologia baseada em evidências: Aspectos conceituais, níveis de evidência, mitos e resistências. Revista Costarricense de Psicología, 33, (2), 79-92. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=476747238008.
Melnik, T., & Atallah, A. (2011). Psicologia baseada em evidências: Articulação entre a pesquisa e a prática clínica. In T.
Melnik & A. N. Atallah (Orgs.), Psicologia baseada em evidências: Provas científicas da efetividade da psicoterapia, pp. 3-13. São Paulo: Santos.
Messer, S.B. & Wampold, B.E. (2002). Let’s face facts: Common factors are more potent than specific therapy ingredients.
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STRUPP, H. H. (1963). The outcome problem in psychotherapy revisited. Psychotherapy: Theory, Research and Practice, 1, 1-13.
Wampold, B.E. (2013). The good, the bad, and the ugly: A 50-year perspective on the outcome problem. Psychotherapy, 50 (1), 16 –24. https://doi: 10.1037/a0030570