Psicoterapia Psicanalítica de Curta Duração
Psicoterapia Psicanalítica de Curta Duração
Longe de abranger todos os ângulos possíveis deste amplo campo de atuação, levantamos algumas considerações pertinentes sobre uma forma de atendimento, aqui denominada ‘Psicoterapia Psicanalítica de Curta Duração’ e, mais especificamente, segundo o pensamento lacaniano.
A primeira questão que desejamos ressaltar é a da possível sobreposição dos campos de conhecimento da psicanálise e da medicina. Quando pensamos em terapia ou tratamento temos como base o modelo médico. Nele a expectativa de cura é o foco principal, portanto, engendra intervenções de positividade, rapidez e eficiência.
Observamos que as pessoas, na maioria das vezes, buscam um tratamento psicológico que as deixem numa posição de espera de uma solução definitiva e rápida. Esperam que lhes dêem uma resposta nos moldes do modelo médico tradicional.
Esta fórmula médica nada tem a ver com a Psicanálise. Por isso é importante ressaltar. Segundo Lacan o modelo médico (1) pressupõe uma relação do sujeito com o Outro que caracteriza um vínculo no qual o profissional tem o saber e transmite para o paciente esse saber. O sujeito espera que o mestre produza um saber para ele. Mas como saber de antemão sobre o desejo do sujeito? E mais, como saber das relações intrapsíquicas que acontecem em cada sujeito? O material de uma psicoterapia é o mundo interno e subjetivo do sujeito. Não é da ordem da objetividade orgânica da medicina.
Sabemos que o motivo da busca pela psicoterapia é o sofrimento do sujeito. Esse sofrimento é causado pelo sintoma. Segundo Freud o sintoma é o resultado da luta de forças entre o desejo e o ego. O sujeito recalca o desejo proibido e isso traz sofrimento. Mas sabemos também que os sintomas reeditam e atualizam uma forma de prazer. É o que entendemos como retorno do recalcado no sintoma.
Essas são as duas faces do sintoma. Na clínica psicanalítica é comum o analista perceber através do discurso do paciente que o sintoma diz algo sobre uma conveniência deste. “O que o paciente ‘ganha’ com o sintoma? Que prazer está em jogo?”
Iremos agora nos remeter ao texto freudiano Além do Princípio de Prazer (2). Lá Freud nos apresenta, entre outras coisas, o conceito de pulsão de morte. Sem nos alongarmos demais neste conceito tão discutido, encontraremos a ideia freudiana de satisfação inconsciente, satisfação mítica. Mítica no sentido de que anseia a satisfação total, o encontro com O objeto. Lacan irá desenvolver esta ideia até chegar ao conceito de gozo. Não nos cabe neste artigo fazermos o caminho lacaniano até ele. Só é importante ressaltar que o gozo não se refere a um prazer, mas sim a um mal para o sujeito, pois implica sua destruição. O gozo como uma forma de transgressão, tenta encontrar a coisa.
O princípio de prazer busca a realização do desejo através dos objetos possíveis, já o além do princípio de prazer busca a ultrapassagem das barreiras que fazem impedimento ao objeto único, total. Busca o objeto interditado a qualquer custo, a completude. Se assim for, vai à procura de algo que pode causar a destruição do próprio sujeito, o fim do desejo. Daí, a pulsão de morte.
Freud nos iniciou no mítico complexo de Édipo para nos apresentar a interdição humana. Lacan foi além e também apontou para qualquer outra interdição, dependendo da cultura. De qualquer forma, o ser humano é castrado, interditado de algo, dividido. Quer a completude, mas também luta contra ela.
Seguiremos então nossa reflexão nos pautando no conceito de satisfação inconsciente nos moldes do gozo.
Estamos então, diante da complexidade do sintoma. E, para compreendê-lo é preciso um trabalho psíquico que desvende, passo a passo, através da associação livre, o desejo do sujeito e o percurso realizado à satisfação inconsciente.
Prossigamos nossa reflexão sobre a Psicoterapia Psicanalítica de Curta duração.
O tempo de duração do tratamento e a indicação da modalidade de atendimento devem seguir os pressupostos da psicanálise.
O mal-entendido das ciências positivistas resulta em um argumento equivocado de que é a psicanálise a responsável pelo longo tempo dos tratamentos. Desde que Freud abandonou o hipnotismo, testemunhamos a inegável importância dos movimentos psíquicos em jogo na formação dos sintomas. Acompanhamos cuidadosamente a relação quase inerente entre temporalidade psíquica do sujeito e a duração do tratamento; entre a cristalização das resistências e a modalidade de atendimento.
O tempo e o contexto de os sujeitos falarem de si mesmos fundamentam-se no particular de cada um. O psiquismo tem suas próprias leis e um tempo divergente do tempo cronológico.
Mas cabe pensar como tratar essa característica do tempo breve de tratamento no campo psicanalítico; como integrar este critério temporal aos pressupostos psicanalíticos.
Esta nossa reflexão faz um recorte na abordagem sobre as entrevistas preliminares em Freud e Lacan. Por esse caminho é possível elaborar argumentos que nos aproximam de uma atuação consistente do psicanalista em atendimentos de curta duração.
Segundo o pensamento lacaniano, o final das entrevistas preliminares apresenta-se como o limiar da entrada em análise, o que nos abre a possibilidade de aproximar esse primeiro tempo de análise aos atendimentos que aqui chamamos de Psicoterapia psicanalítica de curta duração.
Antonio Quinet em seu livro As 4+1 Condições da Análise (3) ressalta a importante discussão sobre as primeiras entrevistas e nos aponta que desde Freud encontramos a ideia de tratamento de ensaio, referida ao início do tratamento. A expressão entrevistas preliminares corresponde, em Lacan, ao tratamento de ensaio em Freud. Esta expressão indica que existe um limiar, uma porta de entrada na análise totalmente distinta da porta de entrada do consultório do analista. Trata-se de um tempo de trabalho prévio, em relação à análise propriamente dita, cuja entrada é concebida não como continuidade, e sim como uma descontinuidade, um corte em relação ao que era anterior e preliminar. Esse corte corresponde a atravessar o limite de entrada do preliminar para entrar no discurso analítico. Esse preâmbulo a toda a psicanálise é demarcado por Lacan como condição absoluta.
Sabemos que nem sempre é possível demarcar claramente o momento exato do final das entrevistas preliminares. Isso se dá porque a associação livre está em jogo desde o início, tanto nas entrevistas preliminares quanto na própria análise. Elas têm a mesma estrutura da análise, mas são distintas desta. Do ponto de vista do analista, as entrevistas preliminares podem ser divididas em dois tempos: um tempo de compreender e um momento de concluir, no qual ele toma sua decisão.
É neste momento de concluir que se coloca o ato psicanalítico, assumido pelo analista, de transformar o tratamento de ensaio em análise propriamente dita. Aqui no nosso caso, o tratamento de curta duração poderá se encerrar ou continuar se o paciente assim desejar.
Na psicanálise só há uma demanda verdadeira para se iniciar uma análise: a de se desvencilhar de um sintoma. Lacan afirma que a demanda de análise propriamente dita só pode ser assim entendida se for correlata à elaboração do sintoma enquanto sintoma analítico. O sujeito pode ir ao analista para se queixar de seu sintoma e pedir para se livrar dele, mas isso não basta. É preciso que essa queixa se transforme: que o sintoma passe do estatuto de resposta ao estatuto de questão para o sujeito, para que este seja instigado a decifrá-lo.
Observamos aí dois movimentos fundamentais que ocorrem na relação analítica: a transformação do sintoma inicial do paciente em sintoma analítico e o trabalho de deciframento que deve ser feito pelo paciente.
No trabalho preliminar, o sintoma será questionado pelo analista, que procurará saber a que esse sintoma está respondendo, que satisfação inconsciente esse sintoma vem delimitar. Essa problemática pode ser formulada em termos freudianos da seguinte forma: o que fez fracassar o recalque e surgir o retorno do recalcado para que fosse constituído o sintoma?
Essa etapa inicial de trabalho, em que o analista propiciará que o paciente fale livremente, relançando sempre o paciente ao próprio discurso para que o sintoma possa ser transformado em sintoma analítico é o que, nesta reflexão, aproximamos daquilo que chamamos de análise de curta duração.
Há de se fazer um caminho que se inicia na queixa do paciente até a elaboração de um sintoma analítico, ou dito de outra forma: tempo de tornar o sintoma analisável.
Esse momento de constituição do sintoma analítico equivale a sua transformação em um enigma, ou seja, não existe uma resposta ou uma solução a priori. O paciente irá decifrar o enigma com seu próprio discurso.
O analista deve procurar fazer com que o paciente fale sobre si mesmo, formule suas hipóteses e viva na relação transferencial a expressão de suas fantasias. Tornar o sintoma analisável requer que o paciente se implique nele, perceba sua complexidade e seus enigmas.
O trabalho psicanalítico de curta duração aqui é entendido como uma etapa do trabalho pessoal, onde alguns sintomas podem vir a desaparecer ou mudar e os primeiros passos podem ser dados no sentido de esvaziar a relação analítica do discurso imaginário e imediato. Inicia-se o contato consigo mesmo, com sua realidade de sujeito dividido. Nossa proposta é que o tratamento tenha um ano de duração com a frequência de uma a duas sessões por semana.
Também de grande relevância é a reflexão sobre a função diagnóstica das entrevistas preliminares. Os atendimentos psicanalíticos de curta duração também teriam como função delimitar, através do diagnóstico, aqueles pacientes que poderiam atravessar essa forma de percurso analítico. Se o sujeito é psicótico, é importante que o analista o saiba, pois a condução da análise não poderá ter como referência a castração. É a partir do simbólico que se pode fazer o diagnóstico diferencial estrutural por meio dos três modos de negação do Édipo, correspondentes às três estruturas clínicas.
Cada modo de negação é concomitante a um tipo de retorno do que é negado. No recalque, o que é negado no simbólico retorna no próprio simbólico sob a forma de sintoma: o sintoma neurótico. No desmentido, o que é negado é concomitantemente afirmado retornando no simbólico sob a forma de fetiche do perverso. Na psicose, o que é negado no simbólico retorna no real sob a forma de automatismo mental, cuja expressão mais evidente é a alucinação ou o delírio.
Parece-nos que esta nossa proposição de atendimento de curta duração não seria indicada aos pacientes psicóticos e àqueles com fortes traços perversos. Estas estruturas requerem, efetivamente, mais tempo de trabalho e a continuidade com o mesmo analista.
A psicanálise em atendimento de curta duração pressupõe um objetivo, que é uma mudança subjetiva do sujeito e um encerramento que signifique o momento inicial da trajetória analítica do sujeito. Esse tempo inicial, por si só já promoveria saúde segundo os pressupostos psicanalíticos, pois colocaria em movimento os significantes e possibilitaria a retirada do paciente de uma paralisia psíquica.
O analista vai dirigir o tratamento a um momento de corte, a um momento de passagem, o que é diferente de dirigir o paciente. Distintamente da direção sugestiva, o psicanalista, em qualquer tipo de enquadre, dirige o tratamento, faz o paciente falar, associar, surpreender-se. Através das associações o atendimento se encaminha para o entendimento e elucidação da existência de um conflito inconsciente. Terá alguém que o escute, saberá algo que ele não sabia, mas que igualmente tinha força e existência; perceberá ter feito assim antes, no passado (repetição) e que está diante de um impasse. Isso poderia indicar algo que se presentifica para além do que é mais visível, do que foi pensado e enunciado até o momento. Esta seria uma forma possível de o analista intervir na intencionalidade do paciente. Cortar a idéia imediata e abrir caminho para o sujeito do inconsciente.
Trata-se do ato de fazer o paciente saber-se dividido e a partir daí, saber que para além do prazer, algo nele goza.
Cecilia Carvalho Meirelles
Psicanalista
Psicóloga contratada pelo HUUSP,
desenvolvendo psicoterapias de curta duração
de 1995 a 2015.
(2) S. Freud, “Além do Princípio de Prazer”, Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII, Edição Standard Brasileira, RJ, Ed.Imago, 1976.
(3) A. Quinet, “As 4+1 condições da análise”, RJ, Jorge Zahar Editor, 2001.