Trauma relacional precoce: cicatrizes abdominais
Na espécie humana, como resultado de uma escolha evolutiva da espécie, o bebê nasce em estado de grande precariedade em termos da sua capacidade de sobrevivência, já que o tempo de gestação, necessário para que pudesse nascer com autonomia, diminuiu desde que a espécie ficou de pé, o que levou a mudanças na estrutura pélvica das mulheres. Priorizando o tamanho do cérebro, como compensação frente a todos os tipos de adversidade às quais a criança está exposta ao nascer, a natureza selecionou o comportamento de apego entre os bebês e seus pais, de forma a garantir a sobrevivência dos filhotes. Podemos então dizer que o habitat natural da espécie humana são os relacionamentos, sem os quais não há sobrevivência, nem desenvolvimento. No começo da vida, as comunicações entre o bebê e seus cuidadores são não verbais, gestuais, prosódicas e viscerais. O funcionamento do corpo, com seus ciclos repetitivos de necessidade de alimentação, faz com que o bebê expresse seu desconforto chorando, de modo a ser nutrido e reconduzido à homeostase. Tais ciclos podem ser entendidos como um sistema de trocas com o mundo e de comunicação com os cuidadores primários.
O abdômen, tanto superior quanto inferior, com suas vísceras responsáveis pela digestão daquilo que é ingerido, participa dessa comunicação com o mundo de modo específico: transformando mundo externo em interno e para isso desmontando estruturas alimentares complexas em suas partes mais simples e as reorganizando para integrá-las a um sistema pré-existente que é o corpo. O sistema digestivo e o excretor trabalham absorvendo do meio ambiente o necessário e devolvendo para o exterior aquilo que não é adequado para a manutenção da vida. Podemos entender, portanto, o abdômen, em sua função simbólica, como sistema de troca com o ambiente, de comunicação ou diálogo, que pode ser criativo, funcionando em direção ao desenvolvimento, ou intoxicante e até prejudicial.
Nossa espécie é, antes de tudo, social e empática. Para se desenvolver, o bebê precisa ser cuidado e compreendido, ou seja, ser amado, o que se traduz, nessa idade, em proteção e nutrição. A presença emocional da mãe é necessária, mas, além de formar vínculo, espera-se que o adulto cuidador seja capaz de responder às demandas da criança de forma eficiente, tanto em termos concretos, no que diz respeito às necessidades corporais, quanto às emocionais. Uma das principais exigências dessa relação é a de que haja prontidão psíquica no adulto cuidador para compreendider e suprir as necessidades do bebê, ainda que sua expressão se dê em níveis muito primitivos. Espera-se que uma mãe seja capaz de alimentar e manter sua criança em homeostase, além de espelhar as emoções de seu bebê, de modo a aquietá-lo e oferecer segurança. Tal comunicação é, e permanece sendo ao longo da vida, em grande parte não verbal, construída a partir do diálogo tônico entre os corpos da criança e seus cuidadores, entre a capacidade materna de alimentar e prover seu bebê e a capacidade deste de receber, em seu corpo, o alimento oferecido e processá-lo.
A meta do desenvolvimento é que a criança seja capaz de integrar suas experiências num todo com significado. As informações são muitas, e a criança está sempre ameaçada pela experiência da ansiedade sobrepujante, que é vivenciada quando não consegue sair de um estado de desconforto, compreender ou atribuir significado ao que está acontecendo, não se sentindo capaz, portanto, de planejar uma ação protetora. Tal capacidade de integrar informações, eventos ou circunstâncias, num todo coerente e significativo está nas raízes do desenvolvimento adequado, no qual a ansiedade não se torna paralisante. A qualidade do relacionamento que o bebê estabelece com seus cuidadores vai facilitar ou dificultar a integração coerente dessas informações, uma vez que o desenvolvimento psíquico se dá, necessariamente, na intersubjetividade.
Não encontrar no ambiente cuidadores sensíveis capazes de atribuir significados corretos à expressão do bebê, atendendo às suas necessidades fisiológicas e emocionais em tempo hábil, expõe a criança a altos níveis de ansiedade e configura o que se denomina trauma relacional precoce. Tais vivências de ansiedade que ocorrem no começo da vida, antes que o ego tenha se estabelecido com seus mecanismos de defesa funcionais que protejam a criança da ansiedade devastadora, desencadeiam a atuação de mecanismos de defesa muito primitivos, dissociativos, que impedem que o desenvolvimento aconteça em sua dinâmica normal, que envolve a integração organizada de conteúdos inconscientes. Os conteúdos que não conseguem ser conscientizados permanecem inconscientes, pressionando por conscientização, por meio de sintomas variados, frequentemente somáticos, em geral nas regiões de trocas com o mundo, como o abdômen.
Como ilustração clínica dessa dinâmica, apresentamos o caso de uma menina de 6 anos que é trazida para terapia com queixa de prisão de ventre e muita dor para evacuar. Tratava-se de um caso de adoção tardia, desta menina e de sua irmã, dois anos mais velha. A mãe biológica havia falecido de AIDS e as crianças ficaram expostas à negligência e violência do pai, que terminou por perder a guarda. As meninas moraram num abrigo público por mais ou menos um ano, até serem adotadas por uma mulher solteira, bem-sucedida profissionalmente e rica, que estava em um quadro de depressão. A menina teve muita dificuldade de se adaptar na escola, e sofreu rejeição por se comportar de modo muito tímido, sem se defender de eventuais agressões dos colegas. Acuada e apavorada, não ousava se expressar no grupo social. Sua contenção psíquica e seu medo de ser abandonada, a colocavam na situação de ter que reter tudo, inclusive as fezes. A terapia consistiu em um trabalho em duas dimensões: um aspecto interpretativo, no qual as experiências e emoções foram ganhando palavras e caminhos de expressão simbólica, e outro que ofereceu a possibilidade de experimentar corporalmente a acolhida. Esta criança gostava de ser massageada com óleo aquecido, principalmente nas extremidades do corpo e na cabeça. Depois da massagem, em geral, chorava copiosamente, às vezes terminando o choro com espasmos do diafragma, adormecendo relaxada em seguida. Com o tempo foi permitindo que seu abdômen também fosse massageado, o que teve um bom efeito na remissão dos sintomas. Depois de aproximadamente seis meses de terapia já conseguia falar sobre suas necessidades e havia feito pelo menos uma amiga na escola.
Uma mulher adulta, de origem oriental, buscou terapia, se apresentando como a quinta decepção do pai, que teve cinco filhas mulheres na tentativa de ter um filho homem. Maltratada por um pai frustrado e por uma mãe humilhada, acostumou-se desde cedo a reprimir a raiva, que se manifestava por azia e refluxo noturno. Ela queimava por dentro. Sua terapia envolveu a liberação da voz e das tensões presas na região abdominal por meio de exercícios respiratórios que evoluíram para gritos, emissões sonoras catárticas, e, mais tarde, para canto. Quando conseguiu cantar, de modo harmônico, num coral, seus sintomas gástricos diminuíram.
Outra moça, aos 30 anos, procurou terapia por causa de sofrimento decorrente da doença de crohn. Tinha um pai psicótico que, em surto, ameaçava de morte a família inteira. Embora tivesse uma vida normal, o medo era o sentimento de fundo na sua personalidade, implantado pelos descontroles do pai desde o começo da vida. Fechar os olhos na terapia, com confiança, para fazer um trabalho de relaxamento e ser tocada por outra pessoa, foi seu maior desafio. Submeteu-se à calatonia, uma técnica de regulação de tônus baseada em toques suaves, monótonos e repetitivos nos pés e na cabeça. A inflamação em seu intestino diminuiu a ponto de não ser mais internada.
Entendemos desenvolvimento psicológico como a integração organizada de conteúdos inconscientes. O trauma relacional precoce, causado pela falha na leitura adequada das expressões do bebê, expõe a criança a níveis de ansiedade insuportáveis, e desencadeia a intervenção de mecanismos de defesa disruptivos, que protegem a psique da criança contra a integração dos conteúdos necessários ao desenvolvimento. A integração psicofísica, com a compreensão simbólica dos sintomas corporais, aliada a intervenções tanto no plano simbólico quanto corporal, tem se mostrado efetiva na clínica do trauma.
Ana Maria Galrão Rios
doutora e mestra pelo Núcleo Junguiano de Psicologia Clínica da PUC-SP
Ana Maria Galrão Rios, psicóloga clínica, doutora e mestra pelo Núcleo Junguiano de Psicologia Clínica da PUC-SP, especialista em Jung e Corpo, professora do Instituto Sedes Sapientiae, da Pós Graduação em Psicoterapia Junguiana da UNIP e coordenadora dos cursos com ênfase em criança do Instituto Freedom.
Contato: (11) 99934 6842
anamariagrios@uol.com.br